terça-feira, 8 de outubro de 2013

O mês dos mortos #2: Ritual Kikikoi - Sul e Sudeste do Brasil

Carimbo de taquara Kaingang
O centro da vida ritual entre os Kaingang é ocupado pelo ritual de culto aos mortos. Efetivamente, entre estes índios as etapas do ciclo de vida ou são objeto de rituais circunscritos ao ambiente doméstico (caso da nominação) ou não apresentam qualquer forma de ritualização (caso dos casamentos). Ao contrário, o culto aos mortos destaca-se não apenas pela importância atribuída pelos Kaingang, mas também, por seu caráter comunitário e intercomunitário.
As primeiras referências ao ritual do Kikikoi devemos a Curt Nimuendajú (1913) e a Herbert Baldus (1937), porém os registros sobre as beberagens que acompanhavam os funerais, nos quais era consumida a bebida Aquiqui remontam às primeiras décadas do século XIX.
O Kiki, ou o ritual do Kikikoi (comer o Kiki), como é conhecido o culto aos mortos kaingang, já foi descrito como o centro da vida religiosa destes índios. Não obstante este ritual seja hoje em dia realizado apenas por um pequeno grupo na Terra Indígena Xapecó (SC), todos os Kaingang associam o Kiki à ‘tradição’ indígena, ao ‘sistema dos antigos’. Os registros históricos permitem-nos afirmar que, no passado, este ritual era realizado em diversas regiões.
Mesmo no contexto atual da Terra Indígena Xapecó, onde o Kiki foi realizado pela última vez no ano de 2000, a realização deste ritual possibilita a identificação da articulação desta experiência ritual com crenças e práticas relacionadas à cosmologia dualista kaingang. O ritual consiste, fundamentalmente, na performance de dois grupos formados por indivíduos pertencentes a cada uma das metades clânicas, Kamé e Kairu. A condução da vida social kaingang, vimos, opera uma constante fusão das duas metades. Durante o Kiki, no entanto, as metades atuam separadamente, formando grupos de ‘consangüíneos classificatórios ou mitológicos’. Como nos mitos, o relacionamento entre os grupos que atuam no ritual é marcado pela complementaridade e assimetria entre as metades Kamé e Kairu.
A realização do ritual do Kikikoi depende da solicitação dos parentes de alguém que veio a falecer no ano anterior ou nos anos anteriores. É necessário que haja mortos das duas metades. O processo ritual é marcado pela reunião dos rezadores em três fogos acesos, em dias diferentes, no terreno do organizador - local conhecido como ‘praça da dança’ ou ‘praça dos fogos’. A data do primeiro fogo geralmente ocorre dois meses antes da realização do terceiro e último fogo. Os Kaingang afirmam que o ritual deve ocorrer entre os meses de janeiro e junho. O primeiro fogo (são acesos dois fogos, um para cada metade) antecede o corte (a derrubada) do pinheiro (Araucaria augustifolia), o qual servirá de konkéi (cocho), vasilha onde é colocada a bebida que recebe o nome do ritual - ‘kiki’ (cerca de 70 litros de mel e 250 litros de água). O segundo fogo (são quatro fogos, dois de cada metade) ocorre na noite seguinte e antecede o início da preparação do konkéi.
O terceiro fogo, etapa mais importante do ritual, articula um maior número de pessoas e eventos. Cerca de dois meses após a colocação da bebida no konkéi, seis fogos são acesos - três dos Kamé e três dos Kairu - paralelos ao konkéi. Os rezadores permanecem durante a noite ao redor dos fogos, acompanhados por outros integrantes das respectivas metades, entoando cantos e rezas. Durante esta etapa, determinadas mulheres, as péin, realizam as pinturas faciais (com tintas obtidas pela mistura de carvão e água), cuja finalidade é a proteção dos participantes contra os espíritos dos mortos de sua metade. São estas mulheres que estão preparadas para entrar em contato com os objetos dos mortos, sem correr os riscos daí advindos. Os rezadores de uma metade dirigem suas rezas para os mortos da metade oposta. Eles rezam, cantam e tocam instrumentos de sopro (confeccionados com taquaras – turu) e chocalhos (confeccionados com cabaças e grãos de milhos – xik-xi). Ao amanhecer os grupos se deslocam da praça de dança para o cemitério, onde novamente são realizadas rezas para os mortos nas suas sepulturas. Quando retornam para a praça de dança os grupos se fundem em danças ao redor dos fogos. O ritual é concluído com o consumo da bebida, do Kiki. O Kikikoi pode ser definido como um esforço da sociedade em ratificar o poder do mundo dos vivos sobre os perigos associados com a proximidade dos mortos. Nestes esforços os Kaingang articulam temas como a complementaridade das metades, a nominação, a integração entre comunidades distintas, o controle sobre o território e a interação mitológico-histórica com a natureza. O grande esforço demandado para a realização deste ritual, associado à necessidade formal de integrar diferentes comunidades, fez com que ele fosse, no passado, realizado em apenas algumas terras indígenas. Mesmo hoje em dia, a realização do ritual do Kiki na TI Xapecó depende da participação de convidados (rezadores e dançarinos) que residem na TI Palmas.
A partir da década de 1940, com a intensificação da presença do Serviço de Proteção aos Índios no interior das TIs kaingang, o ritual do Kiki foi gradativamente abandonado. As pressões “civilizatórias” condenavam, ao mesmo tempo, as beberagens que marcavam as etapas festivas do ritual e a articulação intercomunitária necessária à realização do Kiki. A mais forte, ou melhor, a mais visível expressão da  religiosidade kaingang foi fortemente combatida. Igualmente combatidos foram os xamãs kaingang, muitos tiveram suas casas queimadas e foram obrigados a abandonar suas terras ainda na década de quarenta e cinqüenta. Os xamãs, a quem os Kaingang chamam de Kuiã, demonstram, como no Kikkikoi, um profundo conhecimento e uma perigosa (aos olhos “civilizadores”) capacidade de manipulação da relação entre Natureza, Cultura e Sobrenatureza.
Os kuiã (xamãs), efetivamente, não se ocupam apenas da cura, mas também do conhecimento, da capacidade de “ver e saber o que é que” (como diz um Kaingang da TI Rio da Várzea/RS). Segundo o estudioso do xamanismo kaingang Robert Crépeau (1997), o poder do kuiã é adquirido através dos ‘companheiros’ ou guias animais. Para iniciar a relação como ‘companheiro animal’ o aspirante a kuiã deverá ir ao “mato virgem”, cortar folhas de palmeira e confeccionar recipientes onde colocará água para atrair o ‘companheiro’. Alguns dias mais tarde o iniciante deverá retornar à mata virgem e saberá qual animal bebeu a água preparada. Se ele próprio beber e se banhar com esta água ele passará a ter o animal como ‘companheiro’ e guia. O poder do kuiã depende do tipo de ‘companheiro animal’ que ele possui. Os mais fortes, que tem o mig (gato do mato; tigre) como guia, poderão trazer à vida pessoas cujos espíritos foram seduzidos pelos mortos, viajando para o Numbé (lugar intermediário entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos).
Além do poder de cura, os kuiã desenvolvem a capacidade de ver o que irá acontecer com aqueles que vivem no grupo. No caso de uma luta entre grupos rivais – explicou um velho Kaingang responsável pela organização atual do ritual do Kiki – os kuiã sabem quando os adversários estão preparando um ataque. Caso o grupo a ser atacado também tenha um kuiã, este saberá que um ataque está sendo preparado, “eles conversam só entre eles, como telefone”. Com seus guias ou ‘companheiros’ animais, os kuiã ocupam, portanto, uma posição estratégica na organização da vida social e política das comunidades kaingang. O respeito dos kuiã para com seus guias animais é muito particular. Mesmo sendo os Kaingang caçadores tradicionais, os kuiã não podem caçar estes animais.
Embora a atuação dos kuiã não esteja restrita ao domínio da cura, esta é uma de suas principais atribuições. São também os ‘companheiros’ animais que ensinam aos kuiã o tratamento com os ‘remédios do mato’. Este conhecimento não está limitado à atuação do kuiã; muitos conhecem os ‘remédios do mato’. Há, com efeito, inúmeras categorias de conhecedores de remédios do mato, tais como: curadores, remedieiras e parteiras de acordo com algumas pesquisas realizadas (Oliveira, 1996; Haverroth, 1997). Conforme afirmou um velho kuiã da terra indígena de Palmas(PR), tudo o que existe na natureza é remédio. A condição fundamental para que as plantas sejam consideradas ‘remédio do mato’ é estar no mato-virgem – os ‘remédios do mato’ não podem ser cultivados, estar no mato é condição para que a planta mantenha sua força, e o remédio produzido, sua eficácia.

O xamanismo kaingang, portanto, é uma expressão da relação estreita que estes índios concebem entre sociedade, natureza e sobrenatureza. O xamã é um mediador que atua nas relações entre os domínios do sobrenatural e do natural, tendo sua reputação construída, especialmente, em virtude de suas habilidades de cura e capacidade de ver e saber o conhecimento.






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