Carimbo de taquara Kaingang |
O centro da vida ritual entre os Kaingang é ocupado pelo
ritual de culto aos mortos. Efetivamente, entre estes índios as etapas do ciclo
de vida ou são objeto de rituais circunscritos ao ambiente doméstico (caso da
nominação) ou não apresentam qualquer forma de ritualização (caso dos
casamentos). Ao contrário, o culto aos mortos destaca-se não apenas pela
importância atribuída pelos Kaingang, mas também, por seu caráter comunitário e
intercomunitário.
As primeiras referências ao ritual do Kikikoi devemos a Curt
Nimuendajú (1913) e a Herbert Baldus (1937), porém os registros sobre as
beberagens que acompanhavam os funerais, nos quais era consumida a bebida
Aquiqui remontam às primeiras décadas do século XIX.
O Kiki, ou o ritual do Kikikoi (comer o Kiki), como é
conhecido o culto aos mortos kaingang, já foi descrito como o centro da vida
religiosa destes índios. Não obstante este ritual seja hoje em dia realizado
apenas por um pequeno grupo na Terra Indígena Xapecó (SC), todos os Kaingang
associam o Kiki à ‘tradição’ indígena, ao ‘sistema dos antigos’. Os registros
históricos permitem-nos afirmar que, no passado, este ritual era realizado em
diversas regiões.
Mesmo no contexto atual da Terra Indígena Xapecó, onde o
Kiki foi realizado pela última vez no ano de 2000, a realização deste ritual
possibilita a identificação da articulação desta experiência ritual com crenças
e práticas relacionadas à cosmologia dualista kaingang. O ritual consiste,
fundamentalmente, na performance de dois grupos formados por indivíduos
pertencentes a cada uma das metades clânicas, Kamé e Kairu. A condução da vida
social kaingang, vimos, opera uma constante fusão das duas metades. Durante o
Kiki, no entanto, as metades atuam separadamente, formando grupos de
‘consangüíneos classificatórios ou mitológicos’. Como nos mitos, o
relacionamento entre os grupos que atuam no ritual é marcado pela
complementaridade e assimetria entre as metades Kamé e Kairu.
O terceiro fogo, etapa mais importante do ritual, articula
um maior número de pessoas e eventos. Cerca de dois meses após a colocação da
bebida no konkéi, seis fogos são acesos - três dos Kamé e três dos Kairu -
paralelos ao konkéi. Os rezadores permanecem durante a noite ao redor dos
fogos, acompanhados por outros integrantes das respectivas metades, entoando
cantos e rezas. Durante esta etapa, determinadas mulheres, as péin, realizam as
pinturas faciais (com tintas obtidas pela mistura de carvão e água), cuja
finalidade é a proteção dos participantes contra os espíritos dos mortos de sua
metade. São estas mulheres que estão preparadas para entrar em contato com os
objetos dos mortos, sem correr os riscos daí advindos. Os rezadores de uma
metade dirigem suas rezas para os mortos da metade oposta. Eles rezam, cantam e
tocam instrumentos de sopro (confeccionados com taquaras – turu) e chocalhos
(confeccionados com cabaças e grãos de milhos – xik-xi). Ao amanhecer os grupos
se deslocam da praça de dança para o cemitério, onde novamente são realizadas
rezas para os mortos nas suas sepulturas. Quando retornam para a praça de dança
os grupos se fundem em danças ao redor dos fogos. O ritual é concluído com o
consumo da bebida, do Kiki. O Kikikoi pode ser definido como um esforço da
sociedade em ratificar o poder do mundo dos vivos sobre os perigos associados
com a proximidade dos mortos. Nestes esforços os Kaingang articulam temas como
a complementaridade das metades, a nominação, a integração entre comunidades
distintas, o controle sobre o território e a interação mitológico-histórica com
a natureza. O grande esforço demandado para a realização deste ritual,
associado à necessidade formal de integrar diferentes comunidades, fez com que
ele fosse, no passado, realizado em apenas algumas terras indígenas. Mesmo hoje
em dia, a realização do ritual do Kiki na TI Xapecó depende da participação de
convidados (rezadores e dançarinos) que residem na TI Palmas.
A partir da década de 1940, com a intensificação da presença
do Serviço de Proteção aos Índios no interior das TIs kaingang, o ritual do
Kiki foi gradativamente abandonado. As pressões “civilizatórias” condenavam, ao
mesmo tempo, as beberagens que marcavam as etapas festivas do ritual e a
articulação intercomunitária necessária à realização do Kiki. A mais forte, ou
melhor, a mais visível expressão da
religiosidade kaingang foi fortemente combatida. Igualmente combatidos
foram os xamãs kaingang, muitos tiveram suas casas queimadas e foram obrigados
a abandonar suas terras ainda na década de quarenta e cinqüenta. Os xamãs, a
quem os Kaingang chamam de Kuiã, demonstram, como no Kikkikoi, um profundo
conhecimento e uma perigosa (aos olhos “civilizadores”) capacidade de
manipulação da relação entre Natureza, Cultura e Sobrenatureza.
Os kuiã (xamãs), efetivamente, não se ocupam apenas da cura,
mas também do conhecimento, da capacidade de “ver e saber o que é que” (como
diz um Kaingang da TI Rio da Várzea/RS). Segundo o estudioso do xamanismo
kaingang Robert Crépeau (1997), o poder do kuiã é adquirido através dos
‘companheiros’ ou guias animais. Para iniciar a relação como ‘companheiro
animal’ o aspirante a kuiã deverá ir ao “mato virgem”, cortar folhas de
palmeira e confeccionar recipientes onde colocará água para atrair o
‘companheiro’. Alguns dias mais tarde o iniciante deverá retornar à mata virgem
e saberá qual animal bebeu a água preparada. Se ele próprio beber e se banhar
com esta água ele passará a ter o animal como ‘companheiro’ e guia. O poder do
kuiã depende do tipo de ‘companheiro animal’ que ele possui. Os mais fortes,
que tem o mig (gato do mato; tigre) como guia, poderão trazer à vida pessoas
cujos espíritos foram seduzidos pelos mortos, viajando para o Numbé (lugar
intermediário entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos).
Além do poder de cura, os kuiã desenvolvem a capacidade de
ver o que irá acontecer com aqueles que vivem no grupo. No caso de uma luta
entre grupos rivais – explicou um velho Kaingang responsável pela organização
atual do ritual do Kiki – os kuiã sabem quando os adversários estão preparando
um ataque. Caso o grupo a ser atacado também tenha um kuiã, este saberá que um
ataque está sendo preparado, “eles conversam só entre eles, como telefone”. Com
seus guias ou ‘companheiros’ animais, os kuiã ocupam, portanto, uma posição
estratégica na organização da vida social e política das comunidades kaingang.
O respeito dos kuiã para com seus guias animais é muito particular. Mesmo sendo
os Kaingang caçadores tradicionais, os kuiã não podem caçar estes animais.
Embora a atuação dos kuiã não esteja restrita ao domínio da
cura, esta é uma de suas principais atribuições. São também os ‘companheiros’
animais que ensinam aos kuiã o tratamento com os ‘remédios do mato’. Este
conhecimento não está limitado à atuação do kuiã; muitos conhecem os ‘remédios
do mato’. Há, com efeito, inúmeras categorias de conhecedores de remédios do
mato, tais como: curadores, remedieiras e parteiras de acordo com algumas
pesquisas realizadas (Oliveira, 1996; Haverroth, 1997). Conforme afirmou um
velho kuiã da terra indígena de Palmas(PR), tudo o que existe na natureza é
remédio. A condição fundamental para que as plantas sejam consideradas ‘remédio
do mato’ é estar no mato-virgem – os ‘remédios do mato’ não podem ser
cultivados, estar no mato é condição para que a planta mantenha sua força, e o
remédio produzido, sua eficácia.
O xamanismo kaingang, portanto, é uma expressão da relação
estreita que estes índios concebem entre sociedade, natureza e sobrenatureza. O
xamã é um mediador que atua nas relações entre os domínios do sobrenatural e do
natural, tendo sua reputação construída, especialmente, em virtude de suas
habilidades de cura e capacidade de ver e saber o conhecimento.
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