Gilles de Rais não foi o primeiro serial killer. Mas é o
primeiro serial killer famoso.
Sua fama é facilmente explicável. Na França do século XV,
ele era simplesmente o homem mais rico do país – talvez, da Europa. Sua
história, portanto, se alastrou rapidamente – mas há um prejuízo nisto: muito
do que se diz sobre Gilles de Rais pode ser lenda.
Gilles de Montmorency-Laval nasceu em 1404, em uma
família de nobres. Ficaria conhecido como Gilles de Rais (ou de Retz) porque se
tornaria o barão desta localidade. Gilles de Rais também tinha o apelido de
Barba Azul, porque tinha os pêlos faciais bastante escuros.
Mas voltemos a Gilles de Rais…
Seus pais morreram quando ainda era muito jovem, e Gilles
foi criado com o avô materno. Gilles lia muito e um dos seus ídolos era
Calígula, impiedoso imperador romano – que, segundo dizem algumas fontes,
matava por diversão.
Aos 14 anos, o avô de Gilles o proclamou cavalheiro.
No ano seguinte, Gilles fez sua primeira vítima.
Convidou um garoto para brincar de duelo – e o matou, com
sua espada. Gilles era nobre e o garoto era pobre. Nada aconteceu a Gilles de
Rais.
Aos 16 anos, Gilles casou-se com uma herdeira rica e da
junção dos patrimônios viria a sua fortuna. O casal teria uma filha.
Gilles entrou para a carreira militar (por isto, às vezes
é chamado também de O Marechal das Trevas). Na sua primeira batalha, Gilles não
tinha completado nem 18 anos. Gilles lutaria, ainda, ao lado de Joana D’arc,
contra invasores ingleses, na Guerra dos Cem Anos.
Fora os que mataria como serial killer, nestas batalhas
provavelmente Gilles de Rais matou uma quantidade razoável de pessoas…
Gilles de Rais era tão importante que, ainda novo, quando
Carlos VII foi ser coroado rei, Gilles foi um dos poucos a ter uma lugar de
honra na cerimônia.
Mas logo Gilles de Rais se afastou da vida pública,
ficando mais recluso em suas imensas fazendas, já separado de sua mulher.
Gilles começou a gastar sua fortuna, sem pudor, com toda
sorte de extravagâncias, como a caríssima produção de uma peça teatral. Outro
gasto do devoto Gilles foi com a construção de uma catedral! Gilles chegou a
ser impedido, por sua família, de continuar a vender seus bens.
Mas Gilles de Rais, em seus castelos, também começou a se
dedicar a atividades mais sombrias.
Gilles começou a matar. Suas vítimas eram crianças dos
dois sexos, que, antes de serem mortas, eram molestadas e bastante agredidas.
Às vezes eram dependuradas em ganchos, sodomizadas, retiradas, reconfortadas
por Gilles, e então eram dependuradas novamente etc.
Algumas crianças, após mortas, tinhas as vísceras
retiradas – e, sobre estas, Gilles se masturbava.
Uma das primeiras vítimas seria um belo garoto chamado
Etienne Corrillaut, também conhecido como Poitou. Mas, antes de ser morto, um
criado de Gilles sugeriu que ele fosse poupado e transformado em pajem, isto é,
um auxiliar para serviços gerais. Poitou acabaria por se juntar a Gilles em
suas práticas homicidas, mais tarde.
O sadismo de Gilles de Rais, em algum momento,
misturou-se com o desejo de recuperar sua riqueza, e então ele enveredou na
magia negra. No final da década de 1430, Gilles de Rais e um padre italiano
começaram a praticar rituais em que o sangue de crianças era misturado a ferro
e chumbo, na esperança de que daí nascesse ouro.
Em 1440, após um conflito com um padre, a Igreja começou
a fazer várias acusações contra Gilles.
Gilles de Rais e alguns supostos cúmplices foram
torturados – e “confessaram” inúmeros crimes.
Mas quantas crianças Gilles de Rais realmente matou,
afinal? Umas 200 crianças, dizem as fontes mais otimistas. Outros acreditam que
este número pode chegar a 800! Fato concreto é que, em uma torre, em uma de
suas propriedades, foram encontrados restos desmembrados de 40 a 50 crianças.
Muitas crianças possivelmente tinham os restos queimados,
por isto nunca foram encontradas.
Suas terras foram confiscadas pela Igreja.
Gilles de Rais e mais dois homens, incluindo Poitou,
foram então condenados e enforcados, ainda em 1440 – Gilles tinha apenas 36
anos.
Após morto, seu corpo foi queimado.
ANÁLISE DO CASO
Um caso muito difícil de ser interpretado, por alguns
motivos, como a distância histórica. Mas o maior complicador é que sua
confissão pode não ter sido exatamente uma confissão, mas o que talvez foi
obrigado a dizer aos torturadores católicos. Quantas crianças Gilles matou,
então? A resposta menos incerta: “muitas”.
Por que Gilles matou estas crianças? Talvez seja uma
pergunta mais interessante.
O sadismo, o prazer de matar, são explicações recorrentes
quando falamos de um serial killer que age sozinho.
No caso dos que agem em conjunto, a explicação pode ser
bem diferente. Parece correta a acusação de que Gilles não agia sozinho. No
mínimo, existiram cúmplices ou auxiliares. Não há como termos certeza se sempre
agiu em dupla, ou grupo, mas, aparentemente, boa parte do tempo foi assim. Qual
era o objetivo do grupo comandado por Gilles?
Várias hipóteses já foram feitas. Uma, inclusive, inverte
toda a história: o objetivo do grupo era puramente sádico e a história da
Alquimia é que foi uma invenção de última hora, quando capturados, para tentar
“justificar” os atos.
Outra tese, mais romântica, postula que Gilles teria se
apaixonado por Joana D’arc e, após a morte desta, queimada, ele teria se
deprimido – e que tudo isto tem ligação com o fato de ter se tornado um
assassino de crianças…
Uma teoria acredita em um objetivo ritualístico, mas
relacionado ao culto de Diana, um culto de fertilidade…
O que todas estas hipóteses têm em comum é o desprezo às
explicações mais plausíveis.
Atentemos-nos aos fatos. O homem mais rico da França vê
sua fortuna ir embora rapidamente, com seus caprichos. Estamos ainda numa época
de pouca racionalidade, de muita crença em magia e feitiçaria, em fantasias
como: “Se o sangue de crianças for misturado ao chumbo, o chumbo pode virar
ouro.” O ex-mais-rico do país não desejaria recuperar sua fortuna? É claro que
nem todos os decadentes fariam o que Gilles fez. Aqui, sim, entram fatores
psicológicos importantes: a extrema frieza e até o sadismo. E de onde vieram
tais características?
Analisando a vida de Gilles de Rais, encontramos alguns
fatos importantes, como a morte precoce dos pais – mas, na Idade Média,
vivia-se mesmo bem menos que atualmente, ou seja, isto era relativamente comum.
O que mais temos de drástico na vida de Gilles até que mate o primeiro garoto,
no duelo? Nada que seja conhecido.
O que é pouco lembrado, nas análises feitas sobre o caso,
é que a própria infância, na época, era um período duro. Aliás, nem mesmo
existia bem o conceito de infância. Tão logo podiam, as crianças eram colocadas
para trabalhar, em fazendas ou oficinas. Ou treinadas para a vida nobre e
militar, como o pequeno Gilles.
Além disto, havia também o clima de opressão e terror
instaurado pela Igreja Católica.
Este era o clima em que Gilles nasceu e foi criado.
Mas de forma alguma isto é suficiente para tornar alguém
um psicopata. Frio, bruto, talvez. Psicopata, não.
Talvez o fato mais marcante para a consolidação de sua
frieza tenha sido as guerras que liderou.
Gilles era bravo, destemido, e, segundo se conta,
enquanto alguns fugiam, no calor da batalha, ele mais nela mergulhava. A guerra
é uma situação extremamente perturbadora para muitos dos que dela participam.
Trauma de guerra é um diagnóstico epidêmico no durante e no depois das guerras,
mesmo das modernas. E hoje matamos com armas de fogo, à distância. A pólvora só
foi “domesticada”, em armas pequenas, séculos depois de Gilles. Na época de
Gilles, portanto, a guerra era corpo a corpo. Isto é, era necessário matar,
literalmente, com as próprias mãos.
Com o dia-a-dia da guerra, o sangue já frio de Gilles
pode ter congelado de vez. Aprendeu a matar e não sentir nada. Acostumou-se a
isto, talvez sentiu falta disto.
A isto somemos a desilusão matrimonial, a derrocada
financeira, as crenças alquímicas e a “certeza” da impunidade (por ser
poderoso) – e temos um psicopata pronto para matar.
Processo de Inquisição de Gilles
No dia 19 de setembro, festa da Exaltação da Verdadeira
Cruz, do ano da graça de 1440, tem começo um dos mais emblemáticos processos
dos estertores da Idade Média. O acusado é Gilles de Rais, homem temente a
Deus, primeiro barão da Bretanha, marechal de França, grande feudatário,
companheiro de armas de Joana d’Arc em uma guerra libertadora.
Jean de Malestroit, bispo de Nantes, cita o marechal de
França para que compareça a seu tribunal.
Formalmente, Gilles de Rais é acusado de crimes contra a
fé: pactos demoníacos sob a alçada da heresia, sodomia de caráter sacrílego,
violação de privilégios eclesiásticos. Há uma outra acusação, esta de caráter
secundário: o rapto e assassinato de 140 crianças. (Estes são os termos do
processo: historiadores falam de algo em torno a 600 vítimas).
No libelo de acusação, de 15 páginas e 49 artigos, os
crimes só são arrolados no 27º item.
Gilles de Rais tem na época 34 anos. Dez dias antes de
sua prisão, João V, duque da Bretanha fez, diante de um notário, a doação das
terras, castelos e fortalezas de Gilles – após a sua morte – a seu filho, visto
que ele próprio não podia herdar de um vassalo.
Antes do julgamento, Gilles já está condenado.
Cinco dias antes, Gilles recebera o pior castigo que pode
golpear um católico: havia sido excomungado.
Aceita tranquilamente a ideia de morte, diz o historiador
Claude Bertin. Mas não consegue suportar a expulsão da Igreja, ficar à margem
de Deus.
Basicamente, o tribunal de Nantes o acusa de herege,
reincidente, apóstata, evocador de demônios, de ter ofendido a Deus, de ter
pecado contra os mandamentos do Decálogo, os ritos e observâncias da Santa
Igreja e, por último, de ter praticado a sodomia com crianças antes de as matar
e queimar. Gilles chora e pede perdão quando se sabe excomungado de sua Igreja.
Quanto aos assassinatos, ele os confessa sem maiores remorsos:
“Não procurei senão o meu deleite carnal. Por que razão,
nesta hora em que já estou desligado de tudo quanto é terrestre vos ocultaria
que ao praticar sodomia, ao matar e reduzir a pó tantas belas crianças, não fiz
mais do que procurar a alegria que me davam os seus corpos quentes primeiro,
depois gelados entre meus braços? Por que razão vos ocultaria eu que essa
alegria se prolongava ainda quando, com as minhas mãos esquartejava, como
animais no matadouro, aqueles que acabava de amar, que sentir o odor de sua
carne queimada me lançava numa forma de desmaio?”
Suas vítimas são sempre crianças, de ambos os sexos:
“Eu os estrangulava. Quando eles desfaleciam, praticava
neles o vício da sodomia. Quando estavam mortos, beijava nos lábios alguns dos
rostos mais bonitos”.
Após uma extensa e minuciosa confissão de seus crimes, o
marechal de França recebe um aceno de esperança do bispo de Nantes: “Queres
agora, abominando teus erros, tuas evocações e teus outros crimes, que te
fizeram sair da fé católica, ser reincorporado na Igreja, tua Mãe,
entregando-te de novo a ela?”
Gilles, de joelhos, mal consegue acreditar no que ouve.
Chora e suspira. Ante tais demonstrações de arrependimento, os juizes
eclesiásticos decidem readmitir na Igreja o marechal, restituindo-lhe todos os
direitos que perdera com a heresia. Sempre de joelhos, Gilles pede humildemente
a anulação de sua excomunhão. “Pelo amor de Deus”, Jean de Malestroit, o bispo
de Nantes, absolve Gilles de todos seus crimes, reintegra o marechal na
congregação dos fiéis católicos e o admite na participação dos sacramentos.
O trabalho do tribunal eclesiástico está encerrado: “Vai
em paz, monsenhor de Rais. Daqui pela frente, a Igreja nada mais pode fazer por
ti nem contra ti. Te abandona ao braço secular”.
Gilles escapou à excomunhão eterna, a mais terrível das
penas espirituais para um católico. O braço secular – o tribunal civil – em sua
complacência, após torturá-lo, o condena à forca e à fogueira. Mas Gilles já
está confortado com a absolvição religiosa. A forca é o de menos. A morte o
atrai mais do que o aterroriza – escreve Bertin – pois seu caráter exemplar lhe
permitirá viver eternamente.
Boa parte da multidão que acompanha o processo pede
misericórdia para Gilles de Rais. Dada sua condição de nobre, foi poupado da
fogueira. Sua tumba foi profanada em 1793. No lugar de seu suplício, ergueu-se
mais tarde um calvário, que logo se tornou ponto de peregrinação de mulheres
grávidas, ou daquelas que, tendo parido, desejavam ter leite abundante. A cruz
de granito que ornava o calvário desapareceu em 1744. Mas ainda no século
passado, ali se cultuava a Boa Virgem de Cria-Leite.
Fonte: o submundo
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