domingo, 8 de março de 2015

Um pouco mais sobre a civilização Etrusca

Apesar da quantidade conside­rável de túmulos e monumen­tos fúnebres desenterrados há muito tempo no solo da Etrúria, apesar dos numerosos textos que nos legaram historiadores gregos e romanos, o estudo das crenças etruscas en­cerra, ainda hoje, muitas lacunas e mistérios. A enigmática religião dos Toscanos suscita tantas apaixonadas controvérsias, tantas hi­póteses como as origens desse povo secreto, uma religião de que não se pode ler nenhum texto.
Em livro muito recente e monumen­tal, já assinalado, Georges Dumézil salienta que a excepcional riqueza de material funerá­rio não permite ter um conhecimento preciso da teologia etrusca.
“Apesar do considerável acervo de trabalhos", escreve ele, “a religião etrusca permanece obscura. Quando falamos dela, vêmo-nos na contingência de nos estender­mos sobre aquilo que é mais bem conhecido, em particular as diversas formas de adivinha­ção, que tanto interessaram o Estado e os eruditos romanos. Mas isso
certamente desequi­libra a exposição, a expensas da teologia, essa parte soberana de toda religião, a expen­sas das festas do calendário, praticamente ignoradas. Tarefa espinhosa é querer descre­ver a religião de um povo de que não se pode ler nenhum texto.”
A seguir, aludindo às numerosas cidades da confederação etrusca e, conseqüentemente, ao caráter variado da religião etrusca — já que cada uma dessas cidades tinha um sistema de crenças próprias — Georges Dumézil acrescenta que as escavações arqueológicas efetuadas nas tumbas etruscas não fornecem indicações claras sobre os ritos religiosos praticados aqui ou ali.
Divindades obscuras, herméticas, incompreensíveis do mesmo parecer disse o notável etruscólogo italiano Massimo Pallottino que, depois de 40 anos de pesquisas consagradas aos santuários, aos templos, as inscrições e aos monumentos funerários, constata que a interpretação do fato religioso etrusco continua sendo uma empresa difícil. Nem ele nem a numerosíssima equipe de arqueólogos que, sob sua direção, se esforça para decifrar o significado das inscrições e pinturas encontradas nas tumbas da antiga Etrúria conseguiram.
Até o presente, saber se a religião etrusca, fatalista, dominada por divindades obscuras e incompreensíveis, propõe ao homem etrusco princípios éticos precisos. Demonstraram, ao certo, que a vida pública e privada dos Etruscos era inteiramente regida pela religião. Mas nada prova que essa prática religiosa repousava sobre bases metafísicas e morais definidas.

As tríades etruscas

Diante das dificuldades que apresenta o estudo intrínseco dessa estranha religião, certos autores procuraram contornar o obstáculo adotando o que Georges Dumézil chama de “método comparativo” . Já que o fato religioso etrusco resiste, por si mesmo, a toda tentativa de síntese, por que não analisar algumas de suas componentes para compará-las e confrontá-las com outras religiões. Por sua parte, Georges Dumézil dedica bastante espaço à tríade suprema do panteão etrusco — (Tinia-Una-Minerva) — e afirma, apoiado em sólidas provas arqueológicas, que essa tríade reflete o caráter em parte indo-europeu da religião toscana. “ Toda”, escreve ele, “ religião que não confira uma ordem, uma estrutura, mais ou menos rígida, mais ou menos coerente, mais ou menos completa, à massa de suas representações, notadamente de seus deuses.
Os Etruscos não iam ser exceção... As escavações confirmam que, antes do exemplo do Capitõlio, os Etruscos tinham um gosto especial pelos templos com três cellae e, portanto, pelas associações de três deuses.”

Correspondências entre Etruscos e Caldeus

Outros etruscólogos, tentam encontrar as fontes da religião dos Toscanos na Ásia Menor. Temos assim defensores da origem oriental dos Etruscos. A descoberta, em 1877, do famoso fígado de Plaisance, que permitiu um trabalho de hepatomancia comparada, conferiu certa plausibilidade a essas pesquisas. Parece, de fato, existirem relações de filiação entre esse fígado etrusco e os numerosos fígados achados no espaço analítico e mesopotamico, assim que Jean Nougayrol observa que, num fígado caldeu encontrado em Mari, a vesícula biliar tinha cinco linhas de inscrições, a quarta das quais parecia significar “e a chuva no país inimigo” . Ora, segundo Plínio, os arúspices etruscos atribuíam a vesícula a Netuno, deus da chuva. Quanto ao fígado de Plaisance, tem também cinco divisões inscritas, tendo a segunda a letra N, que se pode considerar como a inicial de Netuno. Jean Nougayrol, em artigo muito bem documentado, cita muitas outras correspondências entre o fígado de Plaisance e os fígados da Ásia Menor. A Etrúria, segundo esse autor, não faz mais do que prolongar os arúspices da Mesopotamia, e as analogias que observamos entre Etruscos e Babilônios não podem decorrer de mero acaso. “As práticas dos arúspices assírio-babilonicos” , conclui Jean Nougayrol, “ são uma tradição contínua que nos é revelada, ‘já pronta’, no limiar do segundo milênio antes de nossa era, e prossegue acrescida de comentários sutis ou de trabalhos críticos, até o alvorecer de nossa era. As mais belas tabuinhas ‘hepatoscópicas’ do Louvre datam dos anos 90 da época seleucida... Também chegaram ate nós maquetes e planos anatômicos da época sargonida... Por outras palavras, as maquetes etruscas, onde quer que as localizemos, sempre encontram réplicas contemporâneas no Oriente.”

O deus Tin: um jovem nu segurando na mão o raio

O etruscólogo italiano Pallottino critica energicamente essa tese. Como vimos, ele considera os Etruscos originários da própria Etrúria. São autóctones, aborígenes, que não podem ter sofrido senão a influência dos po­vos que viviam nas proximidades de seu ter­ritório, ou entretendo com eles relações co­merciais continuadas. Ora, é claro que os vi­zinhos mais próximos, os principais clientes e fornecedores da Etrúria são os colonos gregos há muito instalados no Sul da Itália. Logo, o mistério da religião etrusca deve esclare­cer-se pela aproximação com as crenças gre­gas. Pallottino põe então em evidência o pa­rentesco existente entre o panteão etrusco e o panteão grego. Sua demonstração, é preciso reconhecer, não é desprovida de vigor.
Segundo esse autor, os Gregos forne­ceram aos Etruscos a maioria de suas divin­dades. Assim os deuses etruscos Letha, Laran, Maris, tomam emprestados alguns de seus traços do deus grego Ares. De resto, isso não exclui certas influências orientais que aparecem nitidamente no caso de algumas divindades guerreiras etruscas, como o deus Tin. Este, em numerosos afrescos que ornam as tumbas de Tarquínios, de Caere ou de Vulci, é representado por estatuetas de bronze com os traços de um jovem nu, segu­rando na mão o raio. Mas essas influências orientais não aparecem senão raramente no panteão etrusco.
E Pallottino cita numerosos exemplos de deuses gregos, honrados nas cidades etruscas desde os primórdios de sua história. Os Etruscos, ao adotá-lo, nem mesmo senti­ram necessidade de modificar o panteão gre­go. “ Não faltam divindades gregas introduzi­das diretamente na Etrúria, como Heracles, que se converte no Hércules etrusco e no Hércules romano. Apolo, que na Etrúria se tor­na Apulu ou Aplu; Artemis que se torna Artumes ou Aritimi. Deuses, mitos e culto se re­gulam pelas formas gregas correspondentes. Desse sincretismo e dessas ‘contaminações’, os monumentos e os textos etruscos originais são outros tantos testemunhos.”

As tabuinhas de Pyrgi: novo enigma

Mas eis que uma descoberta arqueo­lógica bem recente vem complicar ainda mais o estudo das fontes religiosas etruscas. Trata-se de tabuinhas inscritas em etrusco e em púnico encontradas em 1963 no santuário de Pyrgi, um dos portos de Caere. Graças à téc­nica do carbono 14, essas tabuinhas foram datadas: remontam, ao que tudo indica, ao iní­cio do século V a.e.c.
O epigrafista francês André Dupont-Sommer, que estudou longamente esse docu­mento excepcional, traduz assim a parte púnica dessa inscrição:

“À Dama Astartéia,

Esse lugar santo é o que foi feito e dado por Tebarie Velianas, rei de Caere, no mês do sacrifício do Sol, como seu (próprio) donativo, compreendendo o templo e seu lu­gar alto, porque Astartéia favoreceu seu de­voto: no ano 3 de seu reinado, no mês de no dia da Sepultura da deusa.
E que os anos durante os quais a está­tua da deusa permanecer no seu templo... sejam anos tão numerosos como aquelas estrelas."
 O autor aborda a seguir a parte etrusca da inscrição. Sem poder traduzi-la — já que a língua etrusca continua inacessível — ele identifica o nome do doador, Tebarie Velianas, e o nome da deusa etrusca Uni, isto é, Juno.  
Recorda então uma passagem na obra de San­to Agostinho que afirma que Juno se chama Astartéia em púnico (língua púnica, Juno Astarti vocatur],
A seguir uma análise minuciosa das tabuinhas leva André Dupont-Sommer a desco­brir diversos aspectos comuns nos ritos, nas festas, nos calendários etruscos e púnicos. Observa igualmente que os cultos orientais em geral, e particularmente o culto fení­cio, exercem “estranha sedução” sobre os Etruscos.

Uma teologia maleável, aberta a todas as correntes estrangeiras

Que pensar de todas essas hipóteses? Será a religião etrusca uma religião grega, caldéia ou semítica?
Ela é, nos diz o grande historiador Albert Grenier, a síntese de numerosos elemen­tos provenientes tanto dos longínquos planal­tos anatólios como das colônias gregas bem próximas da Itália do Sul. A teologia etrusca é maleável, aberta a todas as correntes es­trangeiras. Grenier nos recorda também que o povo etrusco era um povo de marinheiros e comerciantes, em relações constantes e continuadas com as diversas civilizações que floresciam nos contornos mediterrâneos.
Numa seqüência longa e brilhante, o autor coloca admiravelmente em cena esses viajantes infatigáveis, que eram os Etruscos, mostrando-os no ato de percorrer os mais di­versos países, de abordar aos mais distantes portos do Mediterrâneo, de permutar merca­dorias, matérias-primas e idéias religiosas.
“É nas religiões asiáticas” , conclui Albert GrenierR, “por volta do ano 1000 a.e.c., ou anteriores e essa data, que convém procu­rar os antecedentes da religião etrusca. Ora, precisamente, as descobertas recentes de documentos asiáticos do segundo milênio an­tes da nossa era, como as tabuinhas de Boghaz-Keuy e de Ras-Shamra, trazem e tra­rão ainda muitos ensinamentos sobre as reli­giões e os cultos da Ásia anterior.”
O historiador Teopompo, “a pior das más línguas da Antiguidade”
Tal, em resumo, a discussão sobre as fontes da religião etrusca, que ainda suscita, já o dissemos, violentas polêmicas entre etruscólogos.

Mas em que consiste essa religião?

Quais as práticas que ela impunha a “um dos povos mais religiosos, mais doutos em religião, os professores de religião de Roma”, segundo Georges Dumézil? De que mensagens divinas darão testemunho, em sua glacial solidão, as enigmáticas e admiráveis necrópoles etruscas cujos vestígios se der­ramam nas margens do Tibre e do Arno e nas maravilhosas paisagens florentinas?
Conforme já assinalamos, duas séries de documentos nos instruem sobre a teologia etrusca: de um lado, os documentos arqueo­lógicos (túmulos, templos, santuários e ins­crições funerárias de todo tipo), de outro os documentos literários legados pelos historia­dores gregos e romanos.
Alguns desses historiadores minimiza­ram a herança etrusca por orgulho nacional (Roma não deve nada, ou quase nada, à civili­zação etrusca: tal a afirmação repetida, sob uma forma ou outra, por grande número de historiadores da República Romana). Outros cederam ao gosto da difamação sistemática, como aquele historiador grego, Teopompo, cujo testemunho evocaremos mais adiante e que o professor austríaco da história das civilizações antigas, Paul Frischauer, consi­dera como uma “terrível comadre, a pior língua da Antiguidade”.
Por outro lado, autores como Plínio, Sêneca, Tito Lívio, Aulo Gélio, Cícero — tentaram reconstituir a herança religiosa dos Etruscos, se bem que essa reconstituição seja às vezes tingida de certo preconceito em favor dos Etruscos.

O deus Tages: uma criança aquinhoada com a sabedoria de um velho

A particularidade mais digna de nota da religião etrusca é que, ao contrário das re­ligiões grega e latina, ela repousa sobre uma revelação. Dois profetas, um masculino, Ta­ges, e outro feminino, Vegóia, revelaram aos Etruscos o essencial de suas regras e ritos religiosos.
É a Cícero, autor do famoso De Divinatione, que devemos o relato do aparecimento de Tages sob o aspecto de uma criança, mas uma criança dotada da sabedoria de um ve­lho. Para de alguma forma autenticar seu relato, o célebre orador romano nos afirma que hauriu sua história de uma antiqüíssima tradi­ção etrusca.
“Os Etruscos”, escreve Cícero, “con­tam que, no território de Tarquínios, quando era lavrada a terra e foi escavado um sulco mais profundo que os outros, dele surgiu de repente um certo Tages, que falou àquele que trabalhava. Esse Tages, segundo os livros etruscos, tinha o aspecto de uma criança e a sabedoria de um velho. Como o camponês se assustasse ao vê-lo e soltasse um grande gri­to de surpresa, houve uma grande movimen­tação de turbas e, em pouco tempo, a Etrúria inteira estava reunida naquele lugar. Então Tages falou por muito tempo diante de grande número de ouvintes, a fim de que aprendes­sem e confiassem à escrita todas as suas pa­lavras. Seu discurso versava todo ele sobre o ensino da arte arúspice. . . ”

As imprecações de Vegóia contra os deslocadores de limites

A segunda parte da revelação etrusca é realizada por Vegóia que vai ensinar a seu povo a arte de interpretar os relâmpagos, mas principalmente rituais precisos relativos à delimitação dos campos, dos territórios e das cidades. Ensinamentos práticos, portanto, muito semelhantes, a meu ver, aos preceitos do Alcorão em que o cuidado com a vida coti­diana do crente predomina largamente sobre as sutilezas teológicas. O Liber Vegoia, coletânea dos discursos da deusa Vegóia, infeliz­mente não chegou até nós. Somente restam alguns fragmentos relatados por Tarquitius Priscur, historiador romano de origem etrus­ca (primeiro século de nossa era). 
Eis o fragmento mais importante — e também o mais revelador — da sensibilidade religiosa etrusca. Esse fragmento é intitu­lado Extrato do Livro de Vegóia e Arruns Velthumnus (Arruns era o rei de Chiusi, Clusium em latim):

“Saiba que o mar foi separado do céu. Ora, quando Júpiter reivindicou a terra de Etrúria, estabeleceu e ordenou que as planí­cies fossem medidas e os campos limitados. Conhecendo a avareza humana e as paixões que a terra provoca, quis que tudo fosse defi­nido por limites. Esses limites, quando alguém, um dia, movido pela avareza do século VIII que termina, desdenhar os bens que lhe foram concedidos e cobiçar os de outro, os homens, por manobras dolosas, os violarão, os atingirão, ou os deslocarão. Mas quem quer que os tenha atingido ou deslocado para estender suas propriedades e diminuir as de outro será, por esse crime, condenado pelos deuses. Se forem escravos, cairão em pior escravidão. Mas, se houver cumplicidade do dono, logo a casa deste será destruída e sua raça inteira perecerá. Aqueles que tiverem deslocado os limites serão atingidos pelas piores moléstias e pelos piores ferimentos e afligidos em seus membros debilitados. De­ pois a terra será seguidamente sacudida por tempestades e turbilhões que a farão oscilar. Volta e meia, as colheitas serão estragadas e derrubadas pela chuva e pelo granizo, seca­rão sob a canícula, serão destruídas pela man­gra. Grassarão as dissensões no seio do povo. Saiba que tais castigos ocorrerão quando tais crimes forem cometidos. Por isso, não aja de má fé, nem com língua enganosa. Ponha nos ensinamentos o seu coração.”

Fundação de Roma segundo o ritual etrusco

Vegóia, a deusa tutelar da propriedade imobiliária, reveste, como não poderia deixar de ser, suma importância aos olhos desse po­vo composto em sua grande maioria de cam­poneses aferrados a seus linguados de terra. Mas é também um povo de construtores e urbanistas, “um povo”, escreve o arquiteto-escritor Vitrúvio “que adquiriu uma arte apri­morada na construção das cidades, de que vemos belos exemplos no território da Etrúria”. E justamente a fundação das cidades faz parte das regras e rituais consignados no Liber Vegoia.
Apoiando-se ao mesmo tempo no his­toriador Plutarco, no poeta Ovídio e no arqui­teto Vitrúvio, Albert Grenier nos descreve a fundação de Roma, fundação realizada, como sabemos hoje, por diversas fontes, segundo o rito etrusco herdado de Vegóia:

“Quando Rômulo", escreve Albert Gre­nier, “quis fundar Roma, começou, segundo Plutarco, por mandar vir da Etrúria especia­listas para ensinar-lhe os ritos e fórmulas apropriados". Não é uma questão de orienta­ção, se bem que se tenha acreditado reconhe­cer vestígios dela nos mais antigos alicerces do Forum; o fato hoje em dia é discutido. Plu­tarco menciona somente no local que foi mais tarde o Comitium, a escavação de uma fossa, o mundus, onde eram jogadas as primícias ‘de gente tinha o cuidado de tornar a jogar para dentro todos os torrões de terra; era o sulco primordial delimitando o pomerium que nin­guém devia transpor. Por isso, nos trechos destinados às portas, o fundador tinha o cui­dado de levantar o arado para interromper o sulco.
“Na cidade etrusca, as portas devem ser ritualmente em número de três, no termi­nal das duas grandes vias axiais da cidade, sendo a extremidade norte do cardo fechada pela acrópole. Do alto dessa acrópole, onde se erguiam os templos”, diz Vitrúvio referindo-se às inscrições etruscas, “os deuses deviam po­der abarcar com o olhar a maior parte da ci­dade e de suas muralhas."

O pepino verdolengo e a abóbora de lados redondos

Quais são esses deuses que devem po­der, com um único olhar, abranger toda a ci­dade? E qual o seu número? São três, como as portas de Roma: Tinia, Uni e Mernva-Menerva, equivalentes a Júpiter, Juno e Mi­nerva. Eles constituem a tríade suprema, a cúpula do panteão etrusco, depois dos profetas-fundadores Tages e Vegóia todas as coisas consideradas como boas’, so­bre as quais cada um dos novos cidadãos vi­nha depositar um pouco da terra do país de onde fosse originário. A seguir a fossa era aterrada, ensina Ovídio, e, em cima, erguia-se o altar onde devia arder o fogo da futura ci­dade. Depois veio o traçado da muralha, com o arado de relha de bronze, com um touro e uma vaca atrelados. Atrás de Rômulo, sua Tinia ocupa lugar preponderante, seme­lhante ao do Júpiter romano do Zeus grego. A marca essencial do seu poder é o raio, ele­mento fundamental da arte arúspice etrusca e insígnia da vontade e do poder divino. Tinia possui três raios, ao passo que a maioria dos outros deuses só possuem um. Já Uni prolonga, em certo sen­tido, o papel de Vegóia, pois é considerada como a protetora das cidades. A transferência para Roma da estátua de Uni depois de Veies conquistada foi, segundo Tito Lívio, um acon­tecimento considerável. Desfrutando grande favor popular, Uni é alternativamente “a ninfa adorável", a “delícia do gênero etrusco”, “a amante heróica” e outras metáforas desse quilate. Menerva, ou Minerva, é com freqüên­cia representada nos vasos ou nas paredes dos túmulos etruscos como uma deusa guer­reira armada da cabeça aos pés, acompanha­da de uma vitória que volita ao redor de sua cabeça.
Afora os deuses da tríade suprema, o mais importante é, sem dúvida, Vertumno. To­dos os documentos iconográficos o represen­tam imediatamente depois de um ou de outro dos três deuses supremos. Considerado como o principal deus da Etrúria (Deus Etruriae Princeps), ele parece, segundo alguns au­tores da latinidade, originário de Volsínios. Muitas vezes representado sob o aspecto de um jovem imberbe, musculoso e possante, preside às forças criadoras do mundo. É o deus da vegetação, do “pepino verdolengo e da abóbora de lados redondos". De resto, é assim que se apresenta a si próprio na céle­bre elegia do poeta latino Propércio:

Tuseus ego, et Tuseis orior.

“Sou Toscano e vindo da Toscana... Talvez meu nome provenha do fato de o ano, que gira, me haver ofertado suas primícias. Creia porém em um deus que lhe fala de si mesmo: minha natureza se acomoda a todas as aparências; torna-me naquela que te agra­dar, eu serei belo. . . Por que não acrescentar aquele que é meu mais belo título de glória? É em minhas mãos que estão os maravilhosos produtos de nossos jardins: o pepino verdo­lengo, a abóbora de lados redondos... e ne­nhuma flor se abre nos prados que não venha decorar minha fronte e nela fenecer. . . ”

Uma Etrúria de inúmeros cultos locais

Não nos parece interessante alinhar uma nomenclatura exaustiva de todos os deu­ses da Etrúria. Seu número, suas funções, suas representações gráficas e até seus no­mes mudam ao sabor das cidades. A Etrúria antiga — já o dissemos — não constitui uma nação, na acepção atual do termo. É uma con­ federação de 12 cidades — cifra aliás contes­tada muitas vezes pelos historiadores. Cida­des ciosas, cada uma delas, de sua indepen­dência, de suas instituições e, decerto, de seus deuses.
Vertumne possui inúmeros templos em Volsínios, mas seu culto é quase inexistente em Populônia que, em contrapartida, reserva a Fufluns, deus do vinho e da orgia báquica, os mais belos santuários. Maris, o deus da guerra e da agricultura, é honrado em Vulci e ignorado em Veies. Turms é venerado em Arezzo mas seu nome parece desconhecido em Tarquínios, sem embargo a “capital”, se podemos chamá-la assim, da religião etrusca. Sethlans, o deus do fogo e da forja subterrâ­nea, é o deus protetor de Perúsia: os vestígios de um grande templo erigido em seu nome ainda se erguem nas cercanias da cidade. Mas não encontramos traço desse deus nas cida­des como Chiusi, Vetulônia, Marzabotto, onde os deuses Aplu, isto é, Apooo, e Hercle, isto é, Hércules, desfrutam favor considerável.
Há também traços de numerosas divin­dades femininas como Tiv, deusa da lua; Artumes (Ártemis) que encontramos amiúde nos espelhos, em companhia de seu irmão Apolo; Turan, deusa-mãe, protetora da mulher e do amor, dos animais, da vida e da morte. Nas pinturas, Turan se nos apresenta como uma moça muitas vezes nua ou vestida só até a cintura. Será Hera? Será Afrodite? Será Perséfone? Ou uma amálgama de todas essas divindades, das quais toma emprestado este ou aquele traço?

Vestígios enigmáticos que não cessam de desafiar os arqueólogos

Como em muito outros domínios da etruscologia, sabemos somente pouca coisa acerca da atitude metafísica desse povo. Bas­ta, é certo, percorrer hoje a Toscana e con­templar essas vastas necrópoles, suas inúme­ras sepulturas das mais variadas formas, para nos darmos conta de que o Etrusco era um homem preocupado profundamente com o pro­blema da morte. O prodigioso luxo funerário encontrado em todos os túmulos lá está co­mo uma testemunha tácita, ignoramos, con­tudo, a forma dessa preocupação assim como ignoramos em definitivo a significação preci­sa desse luxo.
Acaso essas pinturas suntuosas, esses vasos, essas estátuas, esses objetos familia­res que povoam as profundezas das necrópoles provam que os Etruscos previam uma vida além da morte, ou trata-se de outra coisa? Também neste caso, o mutismo impenetrável da língua toscana nos coloca a braços com vestígios em quantidade considerável, mas cujo significado final nos escapa totalmente.
“Os documentos mais significativos”, escreve Âlbert Grenier, “são as pinturas que ornamentam as paredes das câmaras funerá­rias. Mas sua interpretação suscita bom nú­mero de problemas. Eis, por exemplo, desde a época arcaica (séculos VI e V), cenas de caça ou de voltas da caça. Que relação têm elas com o além-túmulo? Serão acaso expres­sões de esperança para a outra vida ou lem­branças caras ao extinto, ou ainda mais sim­plesmente, uma decoração para o túmulo aná­loga à das mais ricas moradias dos vivos? Os monstros terrestres ou marinhos que ali se vêem representados povoam os Infernos? Ou não passam de motivos decorativos empres­tados da arte helénica? As cenas de banque­tes, as danças, a música, os jogos de todo tipo, passam-se nos Infernos ou na Terra? Se­rão acaso algo além da representação das ce­rimônias que acompanharam os funerais? Pro­longarão, quem sabe, enquanto durarem as pinturas, os benefícios e graças para o fale­cido?... Mais tarde, a partir do século IV, as cenas pintadas nas paredes dos túmulos se situam nos Infernos, mas o significado nem sempre é claro...”
Como bem podemos ver, essa abundân­cia de documentos não exclui a incerteza. É geralmente admitido que os Etruscos, que são fundamentalmente inumadores, criam a prin­cípio que seus mortos continuavam a viver nas próprias tumbas, o que explica o fausto de tais monumentos — alguns dos quais são verdadeiras obras-primas de arquitetura — como as admiráveis necrópoles de Volterra, manifestamente destinadas à nata aristocrá­tica da cidade e que inspiraram algumas das mais notáveis páginas de Gabriele D’Annun­zio. Evidentemente o vibrante autor do Martirio de São Sebastião não é um arqueólogo, aquele cientista que sabe ler a linguagem mu­da das pedras. Sua sensibilidade de poeta, no entanto, sabe recriar, para nós, aquela atmos­fera de tragédia e tristeza que ainda impregna as ruínas funerárias da Toscana. Ruínas, como sugere D’Annunzio, que provam à saciedade que os Etruscos acreditavam num além e pensavam que a morte não é o término definitivo da vida, mas sim uma outra forma de vida.
Entre as mais célebres páginas do livro de D’Annunzio sobre a Etrúria, A Cidade Morta (Volterra), citemos aquela em que dois jovens heróis, Paolo e Vana, visitam o museu da ci­dade procurando ali a “expressão eterna de suas almas”:

“ ...Com olhos muito atentos, desco­briam em toda parte indícios do próprio des­tino, imagens manifestas de seus mais secre­tos pensamentos...
. — Que enorme silêncio em quartos tão pequenos — dizia o irmão. — Quem parte não chora, quem fica não chora.
Olham-se fixamente, de mãos dadas, dão-se um adeus sem palavras, perto do limi­te sepulcral. E a testemunha alada outra não é senão a divina Tristeza. Pois a Tristeza é a musa dos Etruscos. É ela quem acompanha, nos caminhos do exílio e do inferno, um enorme Etrusco colorido pela bílis negra... Os Manes, a pé, a cavalo, vêm adiante dos via­jantes um carro coberto, em liteira, em qua­driga. Os corséis atrelados encurvam o pes­coço, de modo que suas crinas tocam o solo como a do alazão de Aquiles no presságio fatal.. .
— Não está aqui a minha imagem? — dizia o irmão demorando-se. — Entre todas as viagens aos infernos, é a eqüestre que me agrada.
Demoravam-se perto da urna, imóveis em seu devaneio, como se um mesmo gênio os dominasse. E ao redor, estendidas sobre tampas quadrangulares, apoiadas sobre o co­tovelo esquerdo, as figuras obesas dos defun­tos de grossos lábios semi-abertos estavam em paz, segurando na mão direita a patera, o leque, as tabuinhas. Mas todas aquelas mãos esquerdas pousadas sobre os coxins em ati­tude imutável, grosseiramente talhadas, algu­mas enormes, outras roídas, outras mutiladas, davam a todos os dois uma vaga angústia como se eles as sentissem pesar sobre seus corações.”

Uma ruptura brutal na arte etrusca

Se ainda ignoramos os elementos pre­cisos da metafísica etrusca, constatamos po­rém suas abruptas variações. Graças a recen­tes escavações efetivadas em cidades etruscas tão distantes entre si como Marzabotto, ao norte, e Caere, ao sul, verifica-se que a representação do além muda radicalmente no século V.
Antes desse período, os túmulos são verdadeiras casas funerárias. As câmaras onde jazem os corpos se abrem para um cor­redor ou mesmo circundam um átrio. Estão cheias de abundante mobiliário e de ricos utensílios domésticos. As pinturas murais evocam festas, banquetes, caçadas, concer­tos e, sobretudo, cenas de guerra onde se vêem soldados etruscos, esguios, de porte garboso, abater os inimigos. Um ambiente de felicidade e triunfo se manifesta na escolha das cores vivas e nas atitudes harmoniosas dos personagens. A Etrúria parece segura de si, próspera, vitoriosa em todas as frentes. Como vimos, é a época da grande expansão etrusca. A partir do século V, tudo muda abrup­tamente. As cores tornam-se menos vivas, mais sombrias. Os vermelhos-vivos, os amarelos-berrantes, pouco a pouco, dão lugar às cores de luto, de tristeza e de morte: o roxo- escuro, o vermelho-ocre, o azul-carregado se tornam as cores dominantes nas pinturas fú­nebres. O lôbrego colorido que invade a arte etrusca reflete-se também na representação mais contrastada, dos personagens: homens, deuses e demônios continuam, é certo, a en­tregar-se a banquetes e a algumas festas. Mas falta a suas atitudes liberdade e espon­taneidade. Os gestos são mais afetados, os rostos inquietos: um tormento secreto, uma angústia reinam desde então na arte etrusca. Tormento e angústia que persistirão até o fim da civilização etrusca e seu total desapare­cimento.
O reino dos mortos não é mais aquele conjunto, quase sorridente, de sepulturas ma­ravilhosamente arranjadas que circundam o átrio, mas sim um mundo tenebroso que se abre para os Infernos. A Etrúria no século V sofre seus primeiros revezes: guerras inces­santes contra Roma e os outros povos itáli­cos, derrotas em terra e no mar infligidas pelos Gregos da Itália do Sul, lutas intestinas entre Tarquínios e Vulci, entre Caere e Chiusi. A confederação etrusca se desmantela pouco a pouco. O império etrusco agoniza. E sua agonia se reflete numa representação cada vez mais terrificante do Inferno.

Rostos contorcidos de dor e deformados por horríveis caretas

Nesse inferno etrusco reina um povo variegado de demônios e gênios. Seu número e seus nomes, como os dos deuses, variam conforme as cidades e as épocas. Na tumba dos Sette Camini, em Orvieto, vemos Athrpa, espécie de Parca de feições atormentadas, imperar no meio de um banquete fúnebre. Em outra parte, na tomba deltorco, em Tarquínios, vê-se Lasa apresentar um rolo no qual estão consignadas as ações do morto. Em outras sepulturas, em Tarquínios ou em Arezo, vêem-se demônios embiocados numa cabeça de lobo, monstros alados de três cabeças e com quatro patas de pássaro. Em Volterra, cujas impressionantes necrópoles foram evocadas por D’Annunzio, encontramos Vanth, demônio fe­minino de andar inquietante. Trajando longo hábito de cor ocre, com duas asas, segura na mão o Livro do Destino e assiste, impassível e muda, à agonia dos moribundos. Aqui o realismo etrusco explode com rara violência: os rostos dos mortos, pintados com cores que lembram as carnes desfeitas, estão contorci­dos de dor, deformados por horríveis caretas. Outro demônio feminino, Culsu, aparece em certas sepulturas de Volsínios agitando to­chas e tangendo impiedosamente um cortejo de mortos. Aqui e ali surgem muitos outros demônios nos afrescos das necrópoles toscanas: demônios de casco fendido e chifru­dos, armados com paus e infligindo aos fale­cidos mil tormentos.

Cáron, demônio etrusco da morte

Mas o senhor absoluto do reino dos mortos etruscos, o único demônio que é visto em quase todas as pinturas funerárias é Cá­ron, ao qual Franz de Ruyt consagrou uma obra apaixonante. Apesar de antigo, Cáron, Demônio Etrusco da Morte, permanece um clássico irretocável, obra-prima que realiza a rara façanha de aliar a mais sábia erudição à clareza (ao contrário — ai de nós! — de ou­tras obras tão “sábias” que são praticamente impossíveis de assimilar e cuja leitura é tão difícil como a do. .. etrusco).
“ Cáron aparece no século V ” , escreve Franz de Ruyt. “ Torna-se até onipresente. É o Rosto da Morte. Como se pudesse, como se devesse, a partir de então, mostrar que se tinha diante de si a morte, que a morte é nosso futuro para todos e que ela nos faz medo. Ouça-se exprimir esse medo, reconhecê-lo.
Cáron, na aparência um homem, ho­mem muito feio, mas homem. O ‘realismo’ com o qual ele é pintado ou esculpido é sur­preendente. Seu nariz é grosso e adunco, as orelhas compridas e pontudas, os cabelos e a barba desleixados, os dentes rilhando. O personagem tem algo de horrível, de anima­lesco. Distingue-se dos homens nas pintu­ras pela cor; geralmente é pintado de azul- escuro.”

Seus olhos são como duas brasas imóveis

Como o vemos, o demônio Cáron, que não obstante toma seu nome emprestado do famoso Caronte grego, nada tem do pacífico barqueiro do Estige, o valente velhinho que, segundo a lenda, se limita a transportar os mortos em sua barca. O Cáron etrusco aproxima-se mais do pavoroso demônio descrito, no canto sexto da Eneida, pelo vate latino, de origem etrusca, Virgílio:

Terribili squalore Charon, cui plurima mento

Canities inculta jacet, stant lumina flammae,

Sordidu ex humeris nodo dependet amictus.

(É Cáron, demônio medonho e repelente / Uma longa barba hirsuta e branca / Orna seu queixo / Os olhos são duas brasas imóveis / Um sórdido farrapo atado por um nó / Cai-lhe dos ombros.)
Nos inúmeros sarcófagos onde se pode ver Cáron, o demônio etrusco castiga, bate, atormenta e inflige aos mortos que acaba de acolher em seu sinistro reino os mais variados suplícios. Existe até um afresco, achado em Tarquínios, em que Cáron arranca um homem aos últimos abraços de seus parentes para desferir-lhe o golpe mortal. Numa estela de Bolonha, Cáron aparece como gigante hirsuto e aterrorizante tendo sobre o braço um homem a cavalo. Em outras estelas — em Arezzo, em Volsínios, em Tarquínios — Cáron arrasta atrás de si variada fauna onde se mesclam esfinges, grifos, hipocampos, monstros mari­nhos, leões devoradores. Um único demônio vem derramar um pouco de claridade e de ca­lor humano no reino tenebroso e cruel de Cáron. É um demônio masculino, de traços re­gulares, do qual a tradição etrusca não con­servou o nome. “É mais jovem e mais amá­vel”, comenta Franz de Ruyt, “e assiste em seu ofício Cáron, ao qual serve, mutatis mutandis, como uma espécie de sancho-pança.”

Do Nergal babilónico ao Cáron etrusco

Os sofrimentos e tormentos a que Cá­ron submete suas vítimas durarão eternamen­te no além? Porventura implicam que a teolo­gia etrusca pressupunha a imortalidade da alma após a morte? Quanto a ele, Ruyt acredita que sim. Vê uma analogia entre Cáron e o deus assírio-babilônico Nergal, que tem o mesmo aspecto horrorizante. Puxando brasa para a sardinha dos que se inclinam por uma origem anatólia dos Etruscos, afirma que a concepção metafísica etrusca e babilónica têm numerosos pontos em comum. Todas duas imaginam uma vida no além.
“A natureza do ser humano”, conclui o autor, “ não varia no decurso das eras; suas reações psicológicas tampouco; muda, porém, sua manifestação exterior, determinada pelas contingências do momento e pela evolução das idéias. Cáron, demônio etrusco da morte, é um aspecto, aqui e agora, das reações hu­manas em face do mistério perturbador em que recai, inevitavelmente, esse outro bem, não menos estranho e incapturável: a vida.”
Se não conhecemos a metafísica etrusca senão por comparações com outras religiões, dispomos porém de numerosos documentos que nos permitem ter uma visão relativamente clara e precisa dos aspectos práticos da religião etrusca, aspectos agrupa­dos sob a designação coletiva de “disciplina etrusca”.
Que é, exatamente, essa disciplina? É o conjunto das regras que presidem às rela­ções entre os deuses e os homens. Tem como ponto de partida a busca escrupulosa da von­tade divina, por todos os meios disponíveis. Relâmpagos, trovões, as entranhas dos ani­mais sacrificados, o vôo dos pássaros, o cur­so dos astros, o aparecimento dos cometas, as chuvas, os sonhos e os pesadelos, os an­dróginos, as crianças de duas cabeças, os bebês prematuros, as árvores, as abelhas: tudo é pretexto para os magos, os arúspices e os adivinhos etruscos para prognosticar e prever o futuro.
A “disciplina etrusca” se divide, essen­cialmente, em três grupos: a arte de interpre­tar os relâmpagos, os raios e os trovões, a arte de ler nas entranhas das vítimas sacrifi­cadas, e por fim uma terceira arte, mais sutil, a dos prodígios cujo sentido profundo os arús­pices etruscos devem penetrar.

Sinais divinos enviados aos mortais

A arte de interpretar relâmpagos, tro­vões e raios está registrada em alguns dos livros sagrados etruscos, os livros dos raios, Libri Fulgurales. Desses livros, perdidos como a maioria dos documentos religiosos etruscos, não nos restam senão alguns indícios e anedotas relatados por Sêneca, Plínio, Cícero, Aulo Gélio e Nigídio Fígulo.
Essa arte, explica Sêneca, baseia-se numa convicção essencial entre os Etruscos: os sinais do céu são destinados pelos deuses a informar os mortais sobre suas intenções. São, portanto, sinais divinos que é absolutamente importante compreender.
“Entre os Etruscos”, escreve o filósofo latino espanhol de nascença, “os mais há­beis dos homens na arte de interpretar os re­lâmpagos, e nós, há a diferença seguinte: nós pensamos que o raio é disparado porque hou­ve uma colisão de nuvens; já para eles, dá-se a colisão para que o raio seja disparado. Relacionando todas as coisas com a divindade, estão convencidos, não de que os raios fazem sinais por terem sido produzidos, mas de que eles se produzem porque têm algo a significar.”
Depois de ter esclarecido a atitude dos Etruscos ante esse fenômeno celeste, Sêneca expõe uma classificação dos raios louvando-se, acrescenta, numa autoridade incontestá­vel, a de Aulo Caecina, originário da Volterra e pertencente a uma família etrusca rica e culta. Desterrado por César, Caecina foi en­viado à Sicília e foi de lá que trocou numero­sas cartas com Cícero que o considerava não só excelente escritor, mas também um perito na arte divinatória... “O conhecimento real­mente maravilhoso da disciplina etrusca”, es­creve Cícero a Caecina, “que você recebeu de seu pai, cujo mérito igualava a nobreza da origem...”

É, portanto, nessa fonte segura que se apóia Sêneca para classificar os raios:

“Se desejamos classificar os raios”, escreve Sêneca, “temos aquele que trespassa, aquele que quebra, aquele que queima. Trespassa quando é uma chama penetrante que, graças à sutileza de seu fogo puro e sem mescla, pode insinuar-se pela mais estreita passagem. Ele faz espatifarem-se os objetos quando é cerrado e nele se mistura uma abun­dância de ar condensado que sopra tempes­tuosamente. Enquanto que o primeiro volta e escapa pela abertura que o deixou penetrar, o segundo, fazendo sentir sua potência sobre um largo espaço, estrondeia, mas não perfura os objetos que atingiu.
A terceira variedade, a que queima, contém muitos elementos terráqueos; tem antes a natureza do fogo do que a da chama. Por conseguinte, deixa vastos traços de quei­madura, que permanecem sobre os objetos to­cados por ele. É certo, não existe raio sem fogo, mas chamamos de especialmente ígneos aqueles que imprimem marcas visíveis de combustão, aqueles que queimam ou enegre­cem. De três maneiras queima os objetos: ou aflorando-os de leve com seu sopro de fogo não causando senão danos ligeiros, ou consumindo-os, ou incandescendo-os. Isto também são queimaduras, mas estas queimaduras di­ferem de caráter e de intensidade (...)
Passo agora à espécie de raio que ene­grece o que atinge. Ou ele colore os objetos, ou os descolore. Pois devo traçar uma distin­ção entre esses dois efeitos: um objeto é des­colorido quando sua cor fica estragada mas não muda; é colorido, quando seu aspecto se modifica, quando, por exemplo, passa do azul ao negro, ou quando embranquece.”

Raios que brotam... do chão

Plínio, por seu lado, assinala, referin­do-se a “escritos etruscos”, que o raio é lan­çado por nove deuses e que há 12 variedades de raios porque Tínia-Júpiter também lança três. Relata também uma estranha crença etrusca relativa a raios que brotam ... do chão.
“A Etrúria”, relata Plínio no Livro II de sua História Natural, “pensa que da terra bro­tam raios que ela chama de inferiores: a esta­ção invernosa os torna particularmente cruéis e execráveis, pois todas as coisas por eles consideradas como terrestres diferem das coisas ‘gerais’ que vêm dos astros e nascem do elemento mais próximo que, segundo eles, é o mais turvo. Uma prova evidente é que to­dos os raios altos que caem do céu fustigam em ziguezague e os chamados terrestres em linha reta. Mas o que faz crer que estes saem da terra é que eles caem de uma fonte mais próxima do que os astros; é bem verdade que não revelam nenhum traço devido a um rico­chete, mas trata-se do indício de um golpe direto, não de um golpe vindo de baixo. Alguns têm o requinte de acreditar que esses raios provêm de Saturno, assim como os raios in­cendiários vêm de Marte, como o que consu­miu inteiramente Volsínios uma das mais ricas cidades da Toscana. Dá-se o nome de ‘raios de família’ aos primeiros que estalam quando o indivíduo se torna chefe de família, os quais predizem o destino para toda a vida. Pensa-se, ainda, que para os particulares o al­cance de seus presságios não ultrapassa 10 anos, exceto os raios que ocorrem no momen­to da primeira cessão patrimonial ou no dia do nascimento, e que para os Estados não ultrapassa 30 anos, salvo quando se trata da fundação de uma colônia.”

Proibição de incinerar um homem atingido por raio

Plínio explica a seguir a maneira como os adivinhos etruscos procedem para fazer a diferença entre raios favoráveis e raios des­favoráveis. Essa arte, na qual, como sabemos, os adivinhos etruscos são mestres consuma­dos, persistirá por muito tempo entre os Ro­manos, mesmo bem depois do desaparecimento político da Etrúria e de sua absorção pelo império romano. Veremos assim esses adivi­nhos acompanhar em suas conquistas as le­giões romanas, escrutar o céu em busca dos sinais celestes e aconselhar os generais a que estão ligados.. .
“Os raios”,escreve Plínio, “que se pro­duzem no lado esquerdo do céu são julgados favoráveis, porque a parte esquerda do céu é a do levante e considera-se menos sua chega­da do que sua volta, seja porque o choque faça sair fogo, seja porque o sopro se vai, uma vez realizada a obra ou esgotado o fogo. Os Etruscos dividiram o céu em 16 setores para essas observações. O primeiro quadrante estende-se do setentrião ao nascente équinoxial, o segundo até o sul, o terceiro atinge o poente équinoxial, o quarto ocupa o espaço restante entre o poente e o setentrião. Cada quadrante é novamente dividido em quatro setores; cha­mam ‘esquerdos’ aos oito situados do lado do nascente, ‘direitos’ aos oito situados do lado oposto. Entre esses setores, os mais nefastos são os do oeste contíguos ao norte. Muito im­portante também é saber de onde vieram os raios e para onde se retiraram. No caso mais favorável, eles voltam para as regiões orien­tais. Assim, quando vindos do primeiro setor, voltam para ele, é o presságio de extraordinária felicidade, tal como o prodígio que foi ou­torgado, dizem, ao ditador Sila. Os outros são proporcionalmente menos favoráveis ou ne­fastos, segundo o setor do céu em que aparecem. Há alguns, ao que se crê, dos quais não é permitido dar nem escutar inter­pretação, salvo se a revelamos a um hós­pede, ou a seu pai ou sua mãe. Reconheceu-se quanto é vã a observação dessas regras, quando o templo de Juno em Roma foi atingido pelo raio sob o consulado de Scaurus, que logo se tornou príncipe do senado.
Os relâmpagos sem trovão se produ­zem antes à noite do que de dia. O homem é o único ente animado que o raio nem sempre mata; todos os outros são mortos pelo raio; aparentemente é um privilégio que a natureza lhe concede, enquanto que grande número de animais o superam em força. Todos os entes animados caem do lado oposto ao golpe; o homem não recupera a vida se não se voltar sobre o lado atingido. Atingido do alto, ele cai; atingido em estado de vigília, é encontrado de olhos fechados; em estado adormecido, de olhos abertos. É proibido incinerar um homem morto dessa maneira; a tradição religiosa quer que ele seja enterrado. O raio não incendeia nenhum ser vivo, salvo já morto-. As chagas dos fulminados são mais frias do que o resto do corpo.”

Um calendário de excepcional riqueza documentária

Nesse domínio dos fenômenos celes­tes que preocupam tão profundamente os Etruscos, dispomos de um documento muito importante, relativo aos trovões. Trata-se do calendário brontoscópico de Nigídio Fígulo. Esse filósofo latino, contemporâneo de Cícero e adepto da mística órfica, afirma que obteve esse calendário “de uma fonte etrusca in­discutível”.
Eis como se apresenta esse calendário. O autor segue a ordem dos meses a partir de 1.° de junho; são todos meses de 30 dias, mes­mo fevereiro, e não há mês intercalado. Para cada dia do mês, a significação do trovão vem indicada: pressagia um acontecimento feliz concernente seja à agricultura, seja à vida pú­blica ou social. Esse calendário brontoscópico não nos coloca a par unicamente das supersti­ções religiosas dos Etruscos, mas também — fato muito mais revelador — sobre sua manei­ra de viver. A importância dada às colheitas, aos animais, aos frutos e à atividade agrícola em geral exprime quanto esse povo de campo­neses era visceralmente ligado à sua terra.
Graças a esse calendário, sabe-se que os Etruscos cultivam o trigo e a cevada, criam carneiros e bois, consomem peixes de água salgada e de água doce, temem as bestas sel­vagens, os gafanhotos e as inundações, dese­jam a chuva, pois freqüentes secas os obri­gam, um ano em cada dois, a importar seus víveres.
Além dessas informações agrícolas, o calendário brontoscõpico nos fornece infor­mações políticas sobre as cidades etruscas. Ficamos sabendo assim que, na Etrúria, existe uma cidade-rainha (Tarquínios) e cidades-súditas. No interior da cidade-mãe, a autoridade parece estar em mãos dos poderosos. Entre os poderosos e o povo a oposição é constante. Fala-se às vezes num rei, qualificado ora de “mestre das causas”, ora de “tirano”, ora de “magnífico senhor”.
O calendário insiste sobretudo no tema da discussão. Estranhamente, é o termo que mais se encontra no calendário (43 vezes). Dessa dissensão, nasce a ameaça da tirania. Constantemente se faz um apelo à concórdia entre os habitantes da cidade. À testa do go­verno há um Senado, que parece jamais lograr o estabelecimento da harmonia e da concór­dia entre os “grandes" e a plebe. Plebe que, por outro lado, parece estar a cada passo na iminência de uma revolta, algumas vezes che­gando mesmo a efetivá-la.
Por conseguinte, a sociedade etrusca é uma sociedade em equilíbrio precário, perma­nentemente ameaçada pelas guerras civis, os assassinatos e as conspirações.

Um quadro vívido e fascinante da vida etrusca

Damos a seguir, com base na tradução francesa de Louis Legrand, os indícios forne­cidos, dia a dia, sobre as múltiplas significa­ções dos trovões durante todo o mês de junho. Isso nos permitirá, como diz admiravelmente o tradutor e autor dessa tese, “andar a par com o homem etrusco, entrar em sua intimi­dade do dia-a-dia, descobrir suas preocupa­ções não só religiosas, mas também práticas, adivinhar seus receios, suas esperanças, em duas palavras, vê-lo viver. Nenhum outro texto nos proporciona um quadro tão vívido, tão fas­cinante do desfiar quotidiano da vida em ter­ras da Etrúria”.
Eis, pois, o documento, do qual só su­primimos a primeira frase “se troveja” repe­tida sistematicamente no início de cada dia (naturalmente, nós a assinalamos para o pri­meiro dia do mês de junho):

“1.° de junho — Se troveja, haverá sa­fras abundantes; a cevada será exceção. Peri­gosas moléstias atingirão o homem.

2 — Os nascimentos serão menos tra­balhosos para as mães; o gado morrerá; have­rá peixe em abundância.

3 — Haverá calores muito secos; por isso não somente os frutos secos, mas tam­bém os tenros serão completamente esturri­cados pela seca.

4 — O ar será úmido e chuvoso, a ponto de as colheitas apodrecerem e se perderem.

5 — Será funesto para os campos. Os que governam as povoações e aldeolas terão dificuldades.

6 — Um caruncho muito pernicioso nascerá no meio da colheita e a atacará quan­do já madura.

7 — As moléstias virão; porém mata­rão pouca gente. Os frutos secos resistirão, os outros secarão.

8 — Isso anuncia chuva copiosa e mor­te do trigo.

9 — Os rebanhos morrerão presa de incursões dos lobos.

10 — As mortes serão freqüentes, mas haverá farta colheita.

11 — Calores inofensivos; a república estará na abundância.

12 — Será a mesma coisa que o dia precedente.

13 — É a ameaça de ruína de um ho­mem muito poderoso.

14 — O ar estará muito quente; sem embargo, haverá uma colheita muito abun­dante, e não menor fartura de peixes flu­viais. Entretanto, os corpos estarão debi­litados.

15 — As aves serão muito incomoda­das peio estio; os peixes morrerão.

16 — É não somente o presságio de di­minuição da safra, como também de guerra; um homem muito abastado morrerá.

17 — Haverá abundância, morte de ra­tos, de toupeiras e de gafanhotos; entretanto, o ano trará ao povo romano a riqueza e tam­bém assassinatos.

18 — É o presságio da desastrosa es­cassez de frutos.

19 — Morrerão os animais daninhos aos frutos.

20 — É uma ameaça de dissensões en­tre o povo romano.

21 — É uma ameaça de escassez do vinho, de fartura de outros produtos e de pei­xe em abundância.

22 — O calor será desastroso.

23 — É o sinal da alegria, do fim dos males, da cessação das moléstias.

24 — É uma promessa da abundância de bens.

25 — As guerras e infortúnios serão inumeráveis.

26 — O inverno prejudicará as colheitas.

27— Haverá para os principais da repú­blica um perigo proveniente do exército.

28 — Haverá colheitas abundantes.

29 — Melhoria para os assuntos da cidade.

30 — Não tardará a haver abundância de mortos.

Um único raio que caiu matou um touro e cinco vacas

No final da tese de onde extraímos esse texto do calendário brontoscópico, Louis Legrand insiste no caráter secreto, esotérico, desse calendário. Como todos os livros sagra­dos etruscos, ele é reservado exclusivamen­te ao uso dos arúspices encarregados de son­dar a vontade dos deuses examinando e inter­pretando judiciosamente os sinais do céu: trovão, raio, relâmpago ou chuva. Os inúme­ros testemunhos que nos deixaram os cronis­tas romanos atestam a importância conside­rável dada à adivinhação, tanto na sociedade toscana como, mais tarde, na sociedade ro­mana que adotou com fervor o conjunto da “disciplina etrusca".
“A espera de uma nova guerra”, escre­ve Tito Lívio, “matinha suspensa a cidade, quando o raio, em meio de uma violenta tem­pestade que desabou durante a noite, bateu e quebrou uma coluna ornamentada com talha-mares de navios, que o cônsul, M. Emílio, co­lega de Sen. Fúlvio, tinha erigido durante a primeira guerra púnica. Esse acontecimento, arrolado entre os prodígios, foi levado ao co­nhecimento do senado. Os senadores ordena­ram que se informassem os arúspices. Esses últimos declararam que era necessário fazer ao redor da antiga cidade, a cerimônia da lustração, visitar processionalmente os templos, fazer no Forum a prece de costume, imolar grandes vítimas, em Roma, no Capitólio e na Campanha, no promontório de Minerva; final­mente celebrar o mais cedo possível, duran­te 10 dias, jogos em honra de Júpiter, o bom, o grande. Diante de todas essas expiações realizadas com cuidado, os arúspices respon­deram que esse prodígio redundaria em pro­veito dos Romanos e que aqueles talhamares que a tempestade derrubara, sendo despojos tomados ao inimigo, vaticinavam o engrande­cimento do território da república e a comple­ta destruição daqueles que iam ser combati­dos. Novos prodígios vieram encher a medida dos temores religiosos: em Satúrnia caíra uma chuva de sangue durante três dias e um único raio que batera tinha matado um touro e cinco vacas; em Auxime chovera terra. Para expiar esses prodígios fez-se tudo que a reli­gião prescrevia e durante um dia houve preces públicas e cessação de todo trabalho.”

“Então, mandaram vir arúspices de toda a Etrúria ..

Cícero também não descuida de con­sultar os arúspices etruscos quando a Repú­blica está em perigo. Arúspices aos quais con­sagrou longas e elogiosas passagens. Em sua Terceira Catiunária, onde o orador romano nos conta a conjuração de Catilina, Cícero relata um episódio ocorrido em 61 a.e.c. Nesse ano numerosos fenômenos celestes — raios, tre­mores de terra, meteoros — semearam o te­mor e a agitação entre a população de Roma:

“Pois, sem falar de certos prodígios, como esses meteoros que, durante a noite, surgiram do Ocidente e abrasaram o céu; sem lembrar a queda do raio e os temores de terra; sem falar de todos os outros fenômenos que se manifestaram em tal quantidade em nosso consulado que os deuses imortais parecem ter previsto os acontecimentos atuais, pelo menos não se deveria, cidadãos, nem deixar passar em silêncio, nem deixar de lado o que vos vou dizer agora. Certamente não esque­cestes que, sob o consulado de Cotta e de Torquato, no Capitólio, grande número de objetos foram atingidos pelo raio: imagens dos deuses foram deslocadas, estátuas de nossos antepassados derrubadas, as mesas de bronze de nossas leis entraram em fusão, e o fundador de nossa cidade, o próprio Rômulo, foi atin­gido, ele que, estais lembrados, era represen­tado no Capitólio por um grupo dourado, crian­ça de colo, de lábios estendidos para as tetas da loba, sua ama de leite. Mandaram então vir os arúspices de toda a Etrúria: eles disseram que massacres e incêndios estavam próximos, e a subversão das leis, a guerra civil no seio da cidade, a ruína total de Roma e do império, se não fossem apaziguados a qualquer preço os deuses imortais cuja intercessão, talvez, suavizasse os decretos do destino.
Ante essa resposta, inicialmente foram instituídos jogos que duraram 10 dias; depois nada que pudesse aplacar os deuses foi omi­tido. Os arúspices prescreveram ainda erigir uma estátua maior a Júpiter e colocá-la sobre um pedestal elevado e, ao contrário do que aqui se pratica, voltá-la de face para o oriente. Esperavam, diziam, que se a estátua que avis­tais daqui encarasse o nascente e, ao mesmo tempo, o Forum e a Cúria, as maquinações que se urdiam contra a salvação da república e do império seriam de tal modo clareadas que o Senado e o povo romano conseguiriam des­vendá-las.”

Duas vitelas brancas e 27 virgens

Outro caso, este narrado por Tito Lívio, nos mostra a que ponto as prescrições ordena­ das pelos arúspices etruscos eram seguidas ao pé da letra. Qualquer omissão, pensavam os Romanos, poderia trazer em sua esteira graves calamidades e perturbar o equilíbrio social e político da cidade. Um equilíbrio que cumpria preservar a todo custo, precisamente por meio da técnica divinatória dos magos etruscos.
“O fogo do céu”, narra Tito Lívio, “caiu sobre o santuário de Juno Rainha, no monte Aventino. Os arúspices responderam que esse prodígio dizia respeito às damas romanas e que era preciso, por meio de um donativo, apa­ziguar a deusa: os edis curuis convocaram ao Capitólio todas aquelas que tinham domicílio em Roma ou até 10 milhas nos arredores. Lá, escolheram 25 entre elas, para que cada uma depositasse em suas mãos uma soma retira­da de seu dote. Essas oferendas serviram para fazer uma bacia de ouro que foi levada ao mon­te Aventino, onde as damas romanas oferece­ram à deusa um sacrifício puro e casto. Logo depois, os arúspices indicaram um dia para outro sacrifício à mesma deusa. Foi esta a ordem observada nessa cerimônia: saindo do templo de Apolo, duas vitelas brancas entra­ram na cidade pela porta Carmentale; após elas, vieram duas estátuas de Juno Rainha, feitas em madeira de cipreste; a seguir 27 moças, com vestes talares, avançavam can­tando, em honra de Juno, um hino bastante notável para aqueles tempos, mas cujos ver­sos hoje em dia pareceriam desprovidos de graça e de harmonia. As virgens eram segui­das de arúspices coroados de louro trajando suas togas pretextas. Saindo da porta, o cor­tejo tomou pela rua dos Jugos e foi parar em frente ao Forum; la, as jovens formaram uma dança circular, compassando a medida pelas modulações da voz e pelo movimento dos pés.

Os arúspices pérfidos condenados à morte

As crônicas romanas são assim rechea­das de histórias e anedotas que dão relevo ao papel vital desempenhado pelos magos, adivinhos e arúspices etruscos na cidade. In­ censados, festejados, cumulados de presen­tes e honrarias, desde que respeitem os “veros princípios" da adivinhação, os magos etruscos, sem embargo, são impiedosamente castigados quando fraudam ou abusam de seu saber, como atesta o seguinte episódio nar­rado por Aulo Gélio em seu Noites Áticas (livro IV, 5):

“Uma estátua, erigida no Comitium, de Horácio Cocles, homem de grande coragem, foi atingida pelo raio. Com a intenção de fazer sacrifícios expiatórios, mandou-se vir arúspi­ces da Etrúria, os quais, movidos por sentimentos de ódio e hostilidade nacional contra o povo romano, tinham decidido efetuar as cerimônias de expiação ao contrário do que prescrevia a religião. Aconselharam, com fal­sidade, que fosse transportada a estátua em apreço a um lugar menos elevado, que o sol nunca iluminava, pois era cercado por altas construções de todos os lados. Posteriormen­te, foram denunciados ao povo, desmascara­dos e, depois de terem reconhecido sua per­fídia, condenados à morte; decidiu-se que, conforme preconizavam os veros princípios, a seguir descobertos, a estátua devia ser leva­da para um local elevado, e por conseguinte ser colocada na esplanada de Vulcano que fi­cava a boa altura; depois do que, sucesso e prosperidade advieram ao povo romano. Foi nesse momento que, como punição e vingan­ça tinham sido aplicados aos arúspices etruscos que aconselharam para a desventura, segundo se conta, foi feito o seguinte verso, que é um chiste, e que os jovens cantaram pela cidade inteira: ‘Mau conselho faz dano ao conselheiro'.
Essa história sobre os arúspices e so­bre esse verso está consignada nos Grandes Anais, livro undécimo, e no livro primeiro dos Acontecimentos Memoráveis de Vérrio Flacco. Mas o verso parece ser tradução do célebre verso grego de Hesíodo: ‘Conselho mau a quem o deu é péssimo’.”

Um documento ultraprecioso: o fígado de Plaisance

A par com a interpretação dos raios, dos trovões e outros fenômenos celestes, a prática dos arúspices, ou seja, o exame das entranhas das vítimas sacrificadas constitui o segundo compartimento da disciplina etrusca. Entre tais entranhas, o fígado ocupa um lugar à parte. O princípio fundamental das práticas dos arúspices etruscos pode ser assim for­mulado: toda coisa sagrada reproduz a imagem divina do universo. No animal sacrificado, o fígado, que é, segundo os Etruscos, a própria sede da vida, é de certo modo o espelho do estado do mundo no momento em que a vítima foi imolada. É por isso que nele se pode ler as disposições favoráveis ou desfavoráveis e, de modo mais geral, todas as vontades dos deuses. Um arúspice, desde que seja hábil e inspirado, pode adivinhar, graças a uma obser­vação atenta do fígado, as intenções mais sutis e mais ocultas das divindades.
Sobre essa prática etrusca dos arúspi­ces dispomos de um documento preciosíssi­mo: trata-se do famoso fígado de Plaisance, e ao qual Georges Dumézil dedica notável análise, embora por de­ mais complexa para ser aqui resumida. Diga­mos apenas que, para esse autor, o fígado de Plaisance simboliza a famosa oposição indo-européia entre o redondo e o quadrado.
A propósito desse fígado de Plaisance, cujas inscrições estão longe de estar todas decifradas e corretamente interpretadas, o etruscólogo francês Jacques Heurgon acha que ele foi fabricado em Cortona, cidade onde o que parece, a religião etrusca se manteve por mais tempo do que em outros lugares. “O ligado teria caído da bagagem de um arúspice em trânsito perto do cruzamento de estradas de Plaisance, talvez de um desses arúspices que serviam como adidos de um general em campanha ou de um governador de província.” E Jacques Heurgon, levado pela fantasia, de­vaneia que o “arúspice desmazelado” bem po­deria ser o célebre Spurinna, arúspice de Cé­sar de que fala o historiador romano Suetônio!
O fígado, ocupa lugar privilegiado na prática etrusca dos arúspices. Mas esta nem por isso descuida dos outros elementos das entranhas como as vísceras, o coração ou os pulmões. Cada detalhe tem sua importância, como revela esta passagem em que o poeta latino Lucânio (Pharsale, livro !, 609) nos faz assistir a um sacrifício feito pelo adivinho etrusco Arruns. É um documento pre­cioso que faz reviver a pungente atmosfera das adivinhações mágicas praticadas pelos Etruscos:

“Já tinha começado a verter o vinho e a semear as farinhas com a folha de sua faca; a vítima, por muito tempo rebelde ao temido sacrifício, com os selvagens cornos mantidos pelos servidores de vestes curtas, de joelhos dobrados, estendia a cerviz vencida. Mas o sangue não jorrou como de costume: pela am­pla ferida, em lugar de sangue rubro, derra­mou-se um humor corrupto. Arruns, espantado desse infernal sacrifício, empalidece e agarra as entranhas para nelas descobrir a ira dos deuses celestiais. A própria cor já assustou o arúspice; pois as vísceras pálidas, mosquea­das de manchas escuras e impregnadas de sangue coagulado, sarapintavam seu lívido matiz com pontos sanguinolentos. Contempla o fígado embebido de pus, vê as veias amea­çadoras do lado hostil. A fibra do pulmão ar­quejante se dissimula e um pequeno sulco corta as partes vitais. O coração está embaixo, as vísceras deixam escapar o humor atra­vés de suas fissuras abertas, os intestinos mostram suas vilosidades e, prodígio indizível que jamais aparece impunemente nas entra­nhas, eis que Arruns vê crescer na cabeça das fibras a massa de uma outra cabeça; uma par­te pende enferma e murcha, a outra brilha e, enorme, sacode as veias com rápidos bati­mentos. Quando esses prodígios lhe fizeram conceber os grandes males fixados pelo des­tino, ele exclama: — Mal posso, deuses do céu, revelar ao povo aquilo que estais pondo em movimen­to; pois não é a ti, grandíssimo Júpiter, que faço este sacrifício, e os deuses infernais enTraram nas vísceras do touro degolado. O que tememos não pode ser exprimido, mas os acontecimentos superarão tudo que se teme. Possam os deuses tornar favorável aquilo que vi; possam estas fibras ser mentirosas e Tages, fundador desta arte, ser um impostor.
Assim vaticinava o Etrusco, envolvendo os presságios em termos ambíguos e dissimulando-os em longos rodeios.”

As entranhas não palpitam como de hábito

Sêneca, por seu lado, nos descreve, em seu Édipo, a maneira como procediam os arús­pices para conhecer a vontade dos deuses. Tirésias e Manto procedem a um sacrifício na presença de Édipo e parecem aterrorizados pe­las anomalias apresentadas pelas entranhas. E, como na prática dos arúspices etruscos, to­da anomalia significa ruptura do equilíbrio na­tural e anuncia portando um mau presságio:

“Manto — Meu pai que é isso? As en­tranhas não palpitam como de hábito, soer­guendo-se com um leve movimento; repelem violentamente as mãos inteiras e as veias jorram novos borbotões de sangue. O coração, totalmente alterado, está flácido e se oculta enfurnado no fundo do corpo; as veias estão  lívidas; uma grande parte dos lóbulos dos pul­mões está faltando, o fígado carcomido exsuda uma bile negra e (presságio certo de amea­ça à unidade do reino) eis que duas cabeças se erguem dele, iguais pela massa de seus tecidos e essas duas cabeças têm cada uma suas lesões escondidas por delgada membra­na que as recobre, embora deixando perceber seus segredos: o lado hostil se incha numa massa sólida onde sete veias se estendem cortadas por uma linha oblíqua que as impede de voltar para trás."
Às vezes, o exame das entranhas pode levar a conclusões ambíguas. Se, no exemplo citado por Sêneca, as sete veias situadas no “lado hostil” não deixam a mínima dúvida so­bre a cólera dos deuses, a anedota contada por Tito Lívio mostra a que ponto o arúspice deve dar prova de sutileza e discernimento na “leitura” dos divinos sinais, mormente se fo­rem contraditórios.
“Os cônsules romanos”, conta Tito Lí­vio (História Romana, livro VIII, 9), “antes de marchar para o combate, sacrificaram. O arús­pice etrusco, conta-se, fez ver a Décio que, na parte favorável, a cabeça do fígado estava mutilada; a vítima, no mais, era agradável aos deuses. O sacrifício de Mânlio tinha surtido efeito.
— Estou contente — diz Décio — , pois meu colega está bem com os deuses.”
A interpretação é equívoca: um sinal funesto numa região favorável. Por isso o arúspice vaticina a Décio que ele vai con­seguir a vitória, mas morrerá no curso da batalha. “ Foi o que aconteceu” , conclui Tito Lívio.

Os prodígios: advertências dirigidas aos homens pelos deuses

Os magos e os arúspices etruscos não se empenham somente em desvendar o sen­tido oculto das entranhas ou dos fenômenos celestes, precisam também interpretar os pro­dígios: é o terceiro compartimento da disci­plina etrusca. Assim como os trovões, o raio ou o palpitar das entranhas, o prodígio possui, na vida religiosa dos Etruscos, um valor essen­cial. O aparecimento de um prodígio quebra, por assim dizer, o equilíbrio natural, tão impor­tante, como vimos, na sensibilidade religiosa etrusca. Rompendo brutalmente o curso nor­mal da vida dos indivíduos e mesmo da comu­nidade, constitui, por isso mesmo, uma adver­tência enviada pelos deuses aos mortais. Um prodígio tanto pode ser o arauto de um acontecimento favorável como de um desfavorável. “Um prodígio” , observa Raymond Bloch, “é sempre a irrupção do sagrado no profa­no, testemunhando tal ou qual modificação nas relações entre deuses e homens: e estes po­dem tirar importantes conclusões para sua própria vida. Sinal privilegiado oferecido à observação humana, o prodígio entra totalmen­te no mundo da adivinhação, atividade religio­sa por excelência dos Etruscos, que tantos documentos diversos da literatura, da epigra­fia e da arqueologia contribuem para nos fazer conhecer.”

O peso das misteriosas forças do destino

Confrontando, sucessivamente, a atitu­de específica dos Gregos, dos Etruscos e dos Romanos, diante dos prodígios, Raymond Bloch constata que essa arte é muito difundi­da, mas em graus diversos, entre todos os povos da Antiguidade. Uma arte muito com­plexa que consiste em deduzir de tais sinais divinos indicações precisas concernentes ao passado, ao presente e ao futuro.
O autor frisa o quanto o povo grego, povo essencialmente racionalista, concede pouco espaço a essas manifestações estra­nhas à ordem natural das coisas. “Inversa­mente”, acrescenta, “os Etruscos, que sentem constantemente acima deles o peso das for­ças misteriosas do destino, consagram-lhe toda atenção e sua ciência dos ritos. Para os Romanos, ver-se-á que foram bastante supers­ticiosos para ver constantemente, em torno de si, surgirem prodígios; mas também bastante pragmáticos para organizar solidamente os ciclos rituais destinados a confirmar as pro­messas e a afastar as ameaças. Talvez nunca os povos antigos tenham manifestado tão bem as características de sua religião, e de seu gênio, como em face do prodígio.”
“Enquanto não se esgotarem as águas do lago de Alba, ninguém verá o Romano senhor de Veies”
Quase nada nos resta hoje dos textos etruscos que ensinam a arte de "decodificar”, se podemos dizer assim, os prodígios, já que tais prodígios constituem a “ linguagem cifra­da” que os deuses imortais estendem aos homens. Todos esses textos desapareceram no naufrágio geral da literatura etrusca. Entre­tanto, fragmentos, tênues, é verdade, e espar­sos, subsistem nas traduções e citações de autores latinos e gregos que nos informam, de maneira bastante precisa, sobre as práti­cas dos magos toscanos e os princípios que eles punham em ação para sondar, através dos prodígios, as intenções divinas, antes de conjurá-las por cerimônias expiatórias apropriadas e capazes de aplacar a cólera dos deu­ses. Encontramos aí a característica funda­mental da religiosidade etrusca: acalmando os furores celestes, os ritos de expiação outra meta não têm senão restabelecer a ordem na­tural rompida pelo surgimento do prodígio.
Um dos exemplos mais citados para ilustrar o papel considerável representado pe­los prodígios entre os Etruscos e os Romanos diz respeito ao lago de Alba. A história, narra­da com vagar por Tito Lívio, se passa na oca­sião do sítio da cidade etrusca de Veies pelas tropas romanas, no início do século IV de nos­sa era. Dura o sítio há vários meses e os si­tiantes romanos começam a perder o ânimo. Subitamente, relata o historiador romano, “ um lago, na floresta de Alba, encheu-se erguen­do-se a uma altura extraordinária, sem que a água caída do céu, ou qualquer outra causa natural, pudesse explicar a maravilha. Para saber o que pressagiavam os deuses com aquele prodígio, foram enviados deputados para consultar o oráculo de Delfos; mas o des­tino havia trazido para mais perto do acampamento um outro intérprete: um velhinho de Veies misturou um dia aos gracejos trocados entre sentinelas romanas e guardas etruscos algumas palavras que ele cantarolava em tom profético: ‘Antes que se esgotem as águas do lago de Alba, ninguém verá o Romano ser dono de Veies’.”

Rapto de um adivinho etrusco

A frase, lançada como que por acaso, e recebida a princípio com indiferença, logo correu de boca em boca. Finalmente, um sol­dado dos postos romanos pergunta a um dos guardas da cidade que estavam mais próximos (esses diálogos familiares não eram nada ra­ros depois de um longo período de cerco), quem era o autor daquelas obscuras palavras sobre o lago de Alba. Fica sabendo que é um arúspice e, na religiosa credulidade de sua alma, supõe um prodígio cuja expiação inte­ressa somente a ele; gostaria, se fosse pos­sível, de aconselhar-se com o adivinho, que por isso atrai a uma entrevista. Caminham os dois para um local apartado, sem armas e sem desconfiança: então o jovem Romano, mais vigoroso, se lança sobre o débil velhinho, rapta-o na frente de todo mundo, a despeito das ameaças dos Etruscos, transporta-o ao acampamento e o apresenta ao general, que o envia a Roma junto ao Senado. Lá, pergun­tam-lhe o significado de sua predição sobre o lago de Alba. Ele responde que “sem dúvida os deuses foram tomados de ódio pelo povo de Veies desde o dia em que lhe deram o pen­samento de revelar a ruína que os fados reser­vam à sua pátria. Cedia então ao divino espí­rito que o inspirava; não pode, portanto, retirar as palavras que havia pronunciado; e talvez não houvesse menor crime em calar o que os deuses imortais querem divulgar do que em trazer à luz seus segredos. Assim, os livros do destino e a ciência etrusca ensinam que no dia em que subirem as águas do Alba, o esgo­tamento do lago, segundo o rito prescrito, assegura aos Romanos a vitória sobre Veies; de outro modo, os deuses não abandonarão as muralhas de Veies”. A seguir explica como se poderia obter o escoamento regular das águas. “ Romano, guarda-te de reter a água do Alba no lago; guarda-te de deixá-la seguir seu curso e rolar para o mar. Que ela se escoe em teus campos, os banhe, divida-se e perca-se em riachos. Quanto a ti, ataca ardorosamente as muralhas inimigas; lembra-te de que os fados, que te são aqui revelados, asseguram-te o fim desse longo sítio e a ruína dessa cidade. Depois da guerra, vencedor, leva um rico presente aos templos de Delfos, e que as práti­cas religiosas de teu país, hoje descuradas, sejam por ti renovadas nas formas solenes.”
Os Romanos vão aplicar ao pé da letra as prescrições do adivinho etrusco. Cavam di­versos canais. Em poucos dias, o lago de Alba se esvazia, expandindo-se por toda parte nos campos vizinhos. Pouco tempo depois, o cerco termina e Veies cai em mãos dos Romanos em 396 a.e.c.

Roncos subterrâneos: um fenômeno temível e incompreendido

Um outro texto, de Cícero desta vez, nos mostra a forma e o conteúdo de uma res­posta dada ao Senado pelos arúspices etruscos em 56 a.e.c. Nesse ano, violento ronco subterrâneo se fez ouvir em Roma, no ager latiniensis lançando a inquietação entre a po­pulação da cidade.
A princípio, os adivinhos, pelo menos a dar crédito a Cícero, contentam-se em anotar com precisão o prodígio sobre o qual foram chamados a se pronunciarem: “Visto que, no ager latiniensis, ouviu-se sob a terra um estrépito acompanhado de um frêmito... ” É a primeira fase da operação: simples constata­ção do fenômeno. Numa fase seguinte, os arúspices, depois de sábias operações mági­cas, conseguem encontrar os nomes dos deu­ses que manifestaram sua cólera por meio desse ronco: assim começa a complexa exe­gese do prodígio. Essa exegese é a parte cen­tral da consulta aos arúspices, pois traz à ame­drontada cidade a explicação de um fenômeno a um tempo temível e incompreendido. “As reclamações”, precisam portanto os arúspices etruscos, provavelmente com o tom sepulcral apropriados às circunstâncias, “vêm de Júpi­ter, Saturno, Netuno, Tellus...” Terríveis ameaças pesam sobre a cidade.
Por que esses deuses estão encoleriza­dos? A resposta dos adivinhos a essa ques­tão proposta pelo Senado Romano é a terceira fase da consulta. Com notável minúcia, os ma­gos etruscos enumeram as múltiplas razões que provocaram a ira dos deuses: “Os jogos foram celebrados com excessiva negligência e conspurcados. Lugares sagrados e religio­sos foram desvirtuados para utilização profa­na. Oradores foram mortos, ofendendo as leis humanas e divinas. A palavra dada e o jura­mento foram esquecidos. Sacrifícios antigos e secretos foram feitos com demasiada displi­cência e conspurcados."
Esse terrível libelo lança o pavor no Senado: tantos crimes, tantos sacrilégios e tantas profanações não podem permanecer impunes e os deuses sem dúvida vão castigar a cidade culpada dessas graves ofensas à or­dem divina! Os senadores então interrogam os adivinhos etruscos: que perigos ameaçam os cidadãos de Roma? Aqui também — e é esta a quarta fase da operação — o diagnóstico é temível. Os arúspices não fazem o menor es­forço para poupar os poderosos senadores romanos. Porta-vozes da vontade divina, sentem-se na obrigação de revelar claramente os terríveis perigos que pesam sobre Roma. É preciso temer, dizem pois, “que pela discór­dia e dissensão dos optimates, mortes e peri­gos sejam tramados contra os pais e os che­fes, que estes sejam privados de socorro, seguindo-se o agrupamento das províncias sob uma única autoridade, a expulsão do exército, seguindo-se um enfraquecimento final. É de recear também que a coisa pública seja lesada por intrigas secretas, que homens corruptos e desapossados sejam guindados a altos cargos, enfim, que a forma do governo seja alterada”.

Os arúspices etruscos, defensores da ordem estabelecida

O texto de Cícero infelizmente não diz nada sobre a quinta e última fase dessa con­sulta, isto é, os rituais de expiação que os arúspices etruscos provavelmente não teriam deixado de prescrever aos senadores roma­nos para conjurar tantos perigos.
Apesar dessa lacuna, o texto que aca­bamos de citar é altamente revelador. Põe em foco a habilidade dos magos etruscos no es­tudo dos prodígios e dá uma idéia muito clara do desenrolar desses cerimoniais dos arúspices que durarão praticamente até o fim do im­pério romano. Revela também — e é esse, em nosso entender, o ensinamento realmente im­portante do texto — a relevância do papel so­cial e político desempenhado pelos adivinhos etruscos na sociedade romana. Na realidade, a Etrúria, vencida, sobreviveu e impôs a Roma seus rituais, suas crenças e superstições, graças a seus arúspices, seus adivinhos, seus magos e seus sacerdotes. “ É a vitória dos ven­cidos", na judiciosa expressão de Henrique Harrel-Courtès.
Qual exatamente o papel desse clero etrusco? É, explica Raymond Bloch, essencial­mente um papel estabilizador que consiste em transportar para o domínio político os sábios preceitos da religião. Do mesmo modo que o aparecimento de um prodígio quebra a harmo­nia natural do universo, assim também as agi­tações sociais, as revoltas rompem o equilí­brio da sociedade. E é preciso, a qualquer pre­ço lutar contra todas essas agitações e todos esses atentados à ordem divina e humana.
“A atitude retintamente aristocrática dos arúspices", esclarece Raymond Bloch, “ patenteia-se na advertência dos perigos que pairam sobre o Estado e a classe senatorial.
Multiplicam assim as medidas preventivas contra toda tentativa que vise a subverter a ordem estabelecida ( ... ) Todas as suas res­postas refletem uma tendência conservadora que exprime fielmente sua posição constan­te ( ... ) Os arúspices são mantenedores da ordem estabelecida, paladinos da classe oligárquica ( ... ) E a atitude deles não se modi­fica em toda a duração quase inverossímil de seu ministério, desde os primórdios da Etrúria até o fim do Império Romano.”

Manter a qualquer preço o colégio dos arúspices

Assim, pois, longe de afundar no nau­frágio político da Etrúria, a disciplina etrusca na realidade sobreviveu e prosperou no trans­curso da história romana. Em seu livro já men­cionado, De Divinatione, Cícero relata um senatus-consulto datando do século II que con­vida cada uma das 12 cidades etruscas a en­viar ao Estado romano seis jovens de nobre origem para seguir os estudos religiosos e perpetuar assim a disciplina etrusca. Esse senatus-consulto exorta vivamente os lucumons etruscos a manter intactas suas tradi­ções religiosas a fim de que, nos diz Cícero, “arte tão aprimorada não se perca para sempre.”
Além do senatus-consulto relatado por Cícero, um importante documento atesta o vi­vo interesse por parte de Roma pelas práticas dos arúspices etruscos; trata-se do discurso pronunciado em 47 d.e.c. pelo Imperador Cláudio perante o Senado. Apaixonado pela histó­ria gloriosa da Etrúria — à qual consagrou, ao que se diz, 20 volumes, hoje perdidos — o Im­perador Cláudio exprime diante dos senado­res sua vontade de lutar contra a invasão das superstições estrangeiras, superstições que ameaçam suplantar “a mais antiga ciência da Etrúria” em proveito do judaísmo ou dos ritos egípcios. Por isso o imperador pressiona os senadores para que salvaguardem o colégio dos arúspices, que é composto de 40 adivi­nhos etruscos provenientes das diferentes ci­dades etruscas.

Eis o texto desse discurso relatado por Tácito e citado por A. Bouché-Leclercq em sua admirável História da Adivinhação:

“Era preciso não deixar perecer, por negligência, a mais antiga ciência da Itália: muitas vezes, em circunstâncias críticas para o Estado, os arúspices tinham sido chamados e seus conselhos haviam restabelecido as ce­rimônias sagradas e assegurado para o futuro uma observância mais estrita dos ritos; os grandes da Etrúria, tanto por iniciativa própria como por instigação do Senado romano, ha­viam mantido e propagado essa ciência nas famílias; nos dias que corriam, ela era descu­rada, devido ao geral descaso pelas artes úteis e à progressiva invasão das superstições estrangeiras.
Momentaneamente, é cer­to, havia prosperidade geral; a benevolência dos deuses, no entanto, requeria em retorno que não se deixasse perder, por causa dos tempos venturosos, as cerimônias rituais ob­servadas nas circunstâncias críticas.” Convo­cou-se então um senatus-consulto confiando aos dignitários a tarefa de determinar o que convinha manter e consolidar na ordem dos arúspices.
“A plebe se entregava desavergonhadamente a uma desenfreada licenciosidade”
A. Bouché-Leclercq assinala que a exor­tação do Imperador Cláudio, ao falar nas “su­perstições estrangeiras” , tinha em mira não somente os ritos egípcios e o judaísmo, mas sobretudo o culto grego de Dioniso.
Um arqueólogo vienense, Paul Frischauer, dedicou longo estudo precisamen­te à introdução desses cultos altamente licen­ciosos, tanto em Roma como na Etrúria, du­rante o século I a.e.c. Uma época confusa em que já se debatia sobre o divórcio, a igualdade dos homens e mulheres e a liberdade sexual! Debates, como se vê, muito próximo dos que podemos ler hoje em dia em nosso jornal:

“As leis relativas ao divórcio”, escreve Paul Frischauer, “ não favoreciam mais exclu­sivamente o marido. Cada vez eram celebra­dos menos casamentos indissolúveis ( ... ) Nos palácios dos patrícios, adornados de obras gregas refinadas, fazia-se questão es­trita de que fossem respeitadas as formalidades, tanto mais que a plebe se entregava desavergonhadamente a uma licenciosidade de­senfreada. Os aristocratas desejavam distin­guir-se exteriormente das massas libertinas. O que se passava entre quatro muros não se propalava senão lentamente através dos me­xericos dos amorosos desbancados que, para se vingar, recorriam à pena. Mas os excessos dos homens e mulheres do povo ( ... ) eram tema favorito das discussões senatoriais.”
“Ninguém deve celebrar festas em segredo”
Contra esses desregramentos sexuais e essas orgias, verdadeiros atentados ao equi­líbrio natural, segundo os princípios da disci­plina etrusca, o Senado multiplicava leis e prometia os piores castigos aos libertinos:

“Nenhum cidadão romano deve misturar-se aos adeptos de Baco. Nenhum homem deve tornar-se seu sacerdote. Nem homem nem mulher devem dirigi-los, não devem ter caixa comum nem empregado, não devem no­mear homem ou mulher na qualidade de em­pregado... Ninguém deve celebrar festas em segredo ( ... ) Nenhuma festa deve ser cele­brada em comum por mais de cinco pessoas. Entre elas não deve haver mais de dois ho­mens e três mulheres (...) As Bacanais (. . .) serão abolidas num prazo de 10 dias após a comunicação desta ordenação."
“Um adivinho de condição inferior, mestre dos cultos noturnos e clandestinos”
Mas nem as leis do Senado, nem a ameaça dos castigos impediram os libertinos romanos e etruscos de continuar a entregar-se às piores intemperanças, como atesta o historiador romano Tito Lívio, afirmando que esses rituais báquicos foram introduzidos de início na Etrúria, depois em Roma por um “Grego de origem desconhecida”:

“ Era", escreve ele, “ um homem nada versado nas diversas artes que esse povo cul­to entre os cultos introduziu entre nós para cultivar o corpo e o espírito, mas simples sa­cerdote e adivinho de condição inferior, não daqueles que praticam um culto público e pro­clamam aos olhos de todos sua fé e sua dou­trina, ganhando os espíritos para seus erros; não, era um mestre de cultos noturnos e clan­destinos. Tratava-se de uma iniciação que ini­cialmente não foi concedida senão a um redu­zido número; depois ela se difundiu entre os homens e as mulheres. Aos rituais do ofício divino ela mesclava o atrativo das bebedices e comezainas, a fim de conquistar adeptos mais numerosos. Quando o vinho aquecia to­dos os corações, quando a noite e a promiscuidade entre os homens e mulheres, entre adultos e adolescentes apagava todo senti­mento de pudor, praticava-se toda sorte de desregramentos. A cada um se ofereciam os prazeres a que seus pendores o incitavam... Por isso tantos falsos testemunhos, falsifica­ções de sinetes, de testamentos e denúncias, e depois envenenamentos e assassinatos até no seio das famílias, sem que se pudesse en­contrar, para dar-lhes uma sepultura digna, os cadáveres das vítimas. Em sua impudência os criminosos empregavam, mais vezes do que a astúcia, a violência. Mas não era nota­da, porque o alarido e o barulho dos tambo­rins e dos címbalos abafavam os pedidos de socorro dos seres humanos violentados ou assassinados. Esse funesto mal, como epide­mia contagiosa, veio da Etrúria e invadiu Ro­ma. No começo, porém, permaneceu oculto, pelo fato de a extensão da cidade oferecer mais espaço e possibilidade a essas malfei­torias.”

Orgias sangrentas no Tibre

A seguir Tito Lívio relata a narrativa de um jovem que escapou por pouco de ser mor­to no curso dessas festas báquicas e conse­guiu safar-se por milagre a seus agressores.

“ ...Os homens profetizavam, como que atacados de loucura, com tremores por to­do o corpo; as mulheres casadas, vestidas de bacantes e com as cabeleiras desatadas, pre­cipitavam-se para o Tibre com tochas acesas, que mergulhavam na água e retiravam, ainda acesas, pois eram revestidas de enxofre e cal; amarravam-se homens a carretilhas e, sob o olhar dos assistentes, eles eram projetados em grutas ocultas; a seguir, pretendia-se que tinham sido arrebatados pelos deuses; na rea­lidade, eram adeptos que se tinham negado a ligar-se por juramento, a participar de qual­quer infâmia ou sofrer qualquer violência. Ha­via considerável número deles e entre eles havia também alguns homens e mulheres de qualidade.”

Os mexericos de Teopompo

Esses escandalosos acontecimentos marcaram em todos os tempos a história dos Etruscos, parece dizer o historiador grego Teopompo, alcunhado, de “a pior das comadres". Em texto que ficou célebre, ele pincela para a posteridade um es­pantoso quadro dos costumes da Etrúria. Com um gosto todo especial pelas anedotas escabrosas e intrigas picantes, Teopompo apre­senta os Etruscos como o povo mais depra­vado, mais imoral e mais irreligioso da Anti­guidade.
“Entre os Tirrenos”, afirma ele, “as mulheres vivem em comum; elas têm grande cuidado com o corpo e se exercitam nuas, muitas vezes com os homens, às vezes entre si; pois não é vergonhoso para elas se mos­trarem nuas. Sentam-se à mesa não ao lado dos maridos, mas dos primeiros dos comen­sais a chegar e elas bebem à saúde de quem bem entendem. São, aliás, grandes beberronas e muito bonitas para se ver. Os Tirrenos criam todas as crianças que vêm ao mundo, sem saber de que pai é cada uma delas. Essas crianças vivem da mesma maneira que suas armas, passando a maior parte do tempo em bebedeiras e tendo comércio carnal com to­das as mulheres indistintamente. Para os Tir­renos não é vergonha nenhuma serem vistos eles próprios praticando em público um ato venéreo ou a ele se submetendo; pois isso também é moda no país. E estão tão longe de encarar a coisa como vergonhoso que, quando o dono da casa está fazendo amor e o chamam, respondem: ‘está fazendo isto, ou aquilo’, dan­do, impudentemente, à coisa, o seu nome.
Quando têm reuniões, seja de socieda­de, seja de parentesco, procedem assim: a princípio, depois que terminaram de beber e se dispõem a dormir, os servidores mandam entrar para perto deles, com as tochas ainda acesas, ora cortesãs, ora rapazes muito belos, ora também suas mulheres; depois de terem tido seu prazer com eles ou elas, mandam dei­tar jovens em pleno vigor com aqueles ou aquelas. Fazem amor e entregam-se a seus folguedos muitas vezes uns à vista dos ou­tros, mas o mais das vezes cercando seus leitos de cabanas feitas de ramos trançados e estendendo por cima seus mantos. É certo que têm muito comércio carnal com as mu­lheres, entretanto se comprazem muito mais com os rapazes e meninos. Estes são, no seu país, muito belos de se ver, pois vivem na mo­leza e depilam o corpo. Por outro lado, todos os bárbaros que habitam nas bandas do Oci­dente besuntam o corpo de pez e o rapam; e entre os Tirrenos há mesmo muitos estabele­cimentos técnicos para essa operação, como entre nós, os barbeiros. Quando vão lá, entregam-se aos cuidados do encarregado de qual­ quer maneira, sem ter vergonha de ser vistos até pelos passantes.”

Os bárbaros suplícios de Mezêncio, rei de Caere

No ácido retrato que esboça dos cos­tumes etruscos, o historiador grego parece deliberadamente não tomar conhecimento das qualidades excepcionais desse povo. A nação de que Tito Lívio dizia “que era apegada mais do que qualquer outra às práticas religiosas, além do mais porque tinha especial compe­tência nessa matéria”, essa nação, de fato, não foi contaminada senão tardiamente, pre­cisamente no momento em que sua famosa “disciplina”, de rigor exemplar, caía em de­suso. Daí o discurso do Imperador Cláudio, e seus apelos para restaurar o colégio dos arúspices, último reduto contra a dissolu­ção dos costumes e a decadência. Teopompo se abstém igualmente de dizer que os ger­mes mortais que contaminaram a alma etrusca e romana eram germes... gregos e orientais.
Na realidade, o quadro sistematicamen­te escandaloso traçado por Teopompo tem ex­plicação em razões históricas. Os Gregos jamais esqueceram a terrível luta que os tinha oposto durante muitos séculos aos Etruscos, aliados dos Cartagineses. O que estava em jogo nessa luta era vital para uns e outros: tratava-se simplesmente do domínio do Medi­terrâneo ocidental. Os Etruscos opuseram igualmente ao expansionismo dos colonos gregos da Itália do Sul uma barreira intrans­ponível, seus piratas faziam reinar o terror em todas as costas italianas e ameaçavam os por­tos gregos estabelecidos naquela região. Houve também a famosa batalha naval de Alalia, nas costas da Córsega, onde os pri­sioneiros gregos caídos em mãos dos Etrus­cos sofreram um medonho castigo, ordena­do, conta Virgílio, pelo cruel Mezêncio, rei de Caere:

“ Devo contar-te essas inomináveis ma­tanças? Os atos selvagens do tirano Mezên­cio? Que os deuses os façam recair sobre ele e sua raça! Chegava a ponto de atar seres vi­vos a cadáveres, mãos contra mãos, boca con­tra boca, e esses supliciados de um novo gê­nero, gotejantes de matéria e sangue corrom­pido, morriam nessa miserável indumentária, de morte lenta."
Essas atrocidades decerto deixaram na memória do povo grego traços indeléveis. Eles explicam, em grande parte, o caráter exageradamente calunioso das descrições de Teopompo.

O filósofo sírio Possidônio visita a Etrúria

Pois a essas bisbilhotices libidinosas, é bom opor o testemunho de Possidônio de Apaméia que, em fins do século II a.e.c., trou­xera de suas grandes viagens de estudos no Ocidente uma visão muito mais equitativa dos costumes etruscos. Se Teopompo não passa de um compilador medíocre e maldizente, já Possidônio é um filósofo de rara têmpera.
Originário da Síria, abandona bem cedo a terra natal, leciona em Rodes onde tem co­mo ouvintes Cícero e Pompeu, e viaja por toda parte, na Grécia, no Egito, e especialmente na Itália onde se demora por muito tempo. Observador atento da sociedade romana, trava ami­zade com diversas personalidades etruscas de Roma que o levam a visitar algumas cida­des da Etrúria. O filósofo estóico, é claro, não tem nenhuma complacência com a deca­dência dos costumes que ele condena severamente. Mas sabe ver e fazer a diferença entre alguns elementos licenciosos, como se encon­tram por toda parte, e o restante da sociedade etrusca, sadia afinal em seu conjunto. Seu jul­gamento é equilibrado: se louva a coragem, o rigor religioso e o espírito empreendedor desse povo, julga, sem embargo, com severi­dade, sua tendência à indulgência e à luxúria. Vícios e virtudes nos são reproduzidos com o mesmo respeito à verdade.

Eis o texto de Possidônio, relatado por Diodoro da Sicília:

“Os Etruscos, que antigamente se dis­tinguiam pela energia, conquistaram vasto ter­ritório e ali fundaram muitas cidades impor­tantes. Dispunham também de poderosas for­ças navais e tiveram por muito tempo o domí­nio dos mares, de tal modo que o que banha as costas da Itália foi denominado por eles Tirreno. Aperfeiçoando o equipamento de seus exércitos de terra, inventaram o que cha­mamos de trombeta, que é da maior utilidade na guerra, e que foi por eles chamada tirrena, e prepararam marcas de honra para os gene­rais que os dirigem, atribuindo-lhes Iictores, um assento de marfim e uma toga bordada de púrpura. E, nas casas, inventaram o peristilo, que é de grande comodidade contra o alarido causado pela turba dos domésticos. A maioria dessas descobertas foi imitada pelos Roma­nos, que as aperfeiçoaram e introduziram em sua civilização. Fizeram progredir as letras, as ciências da natureza e a teologia, e desen­volveram, mais do que qualquer outro povo, a observação dos raios. É por isso que ainda em nossos dias inspiram viva admiração aos que são donos de quase todo o mundo (isto é, os Romanos) e que deles se servem para inter­pretar os sinais celestes.”
Depois dessa justa homenagem à Etrú-ria, Possidônio nos descreve o modo de vida desse país. Uma vida opulenta graças à rique­za excepcional de seu solo. É essa, pensa o filósofo Possidônio, a razão profunda da deca­dência etrusca. Num clima por demais gene­roso, os Etruscos perderam o vigor que era louvado em seus ancestrais:
“Como habitam", prossegue Possidônio, “uma terra fértil em frutos de toda sorte e a cultivam assiduamente, gozam de uma abundância de produtos agrícolas que não só basta a seu sustento como os induz a um luxo excessivo e à languidez, pois mandam servir duas vezes por dia mesas suntuosas com tudo o que contribui para uma vida delicada, prepa­rar toalhas de mesa bordadas de flores, servir uma quantidade de vasos de prata e têm a seu serviço considerável número de escravos. Destes, alguns são de rara beleza, outros adornados com vestes mais magníficas do que convém ao estado servil e entre eles os domésticos têm residências particulares de todo tipo: aliás o mesmo acontece com a maioria dos homens livres. Em geral aparta­ram-se da valentia que prezavam nos tempos antigos e, à força de viverem em banquetes e delícias efeminadas, perderam, como não seria de admirar, a reputação que seus ances­trais haviam adquirido na guerra. Mas o que mais do que tudo contribuiu para entregá-los à languidez foi a qualidade de suas terras, pois, habitando um país que produz tudo e é de uma fecundidade sem limite, eles armaze­nam uma fartura de frutos de toda espécie. A Etrúria, de fato, é muito fértil, desdobrando-se em geral em planícies separadas por coli­nas de encostas cultivadas, e é moderadamen­te úmida, não somente na estação do inverno, mas também durante o período do verão."
Languidez, amor ao luxo e aos banque­tes: essas palavras voltam seguidamente na pena dos poetas e historiadores gregos e la­tinos para definir os Etruscos, gorduchos e obesos. Catulo, evocando as diversas povoa­ções da Itália, coloca entre o “Umbriense eco­nômico” e o “Latino tisnado e de bom ape­tite ” o “Etrusco obeso”. Virgílio, por seu lado, descreve um sacrifício celebrado ao som da flauta, “quando um corpulento Tirreno soprou no marfim junto aos altares”. Catão, o censor desconfiado dos costumes romanos, invectiva alguns funcionários etruscos cheios de enxúndia: “Como o Estado poderia tirar partido de um corpo onde todo espaço, da garganta à cin­tura, é ocupado pelo abdômen?” Quanto ao poeta satírico Lucílio, cobre de zombarias os figurões etruscos “glutões, comilões e esga­nados que se fartavam de toucinho e de lom­bo de porco, se empanturravam de aspargo tenro e de couves-flores e se escangalhavam devorando camarões e esturjões gigantes” . E com esta flecha acerada, o bardo encerra sua diatribe: “Salve, vocês que não passam de ventres!" Outro satirista, Lélio, tece louvores à frugalidade vegetariana, que opõe ao desregramento alimentar dos Etruscos e afirma que a gula, “tão familiar aos habitantes da Etrúria”, é incompatível com um espírito vivo e sutil: “Como poderiam eles ter sabedoria, eles cujo coração está cheio de sujidade e vinho?”
Essa indesejável reputação dos Etrus­cos não transparece somente nos textos lite­rários de que acabamos de citar alguns exem­plos. Há igualmente documentos arqueológi­cos que autorizam a imagem de um povo etrusco voltado para a languidez, a libertina­gem e a gula. Nos afrescos fúnebres de Vulci, de Caere, de Tarquínios, pululam cenas de banquetes e comezainas. Uma estátua, atual­mente conservada no museu de Florença, nos mostra um Etrusco obeso (aliás, é esse o no­me dessa terracota). Ora, que vemos ali? Vas­to saco de carne, esparramado diante de nós e com um ar bonachão. Uma coroa de flores pende de seus ombros e, descendo os olhos por seu braço direito, vemos, na extremidade, uma enorme taça de vinho empunhada com displicência. No anular da mão esquerda cin­tila pesado anel. Mas o que chama mesmo a atenção no personagem é a barriga. Redonda e enorme, ostentando soberbo umbigo nu!

As razões políticas e religiosas da decadência etrusca

De que maneira, indaga-se, povo tão profundamente religioso, fez prova de valen­tia e temeridade, autor da primeira e mais bri­lhante civilização em solo italiano, pode cair em tal decadência? Pois mesmo sem dar fé exclusivamente às calúnias de Teopompo, é um fato que os costumes etruscos se afrou­xaram perceptivelmente. Há, como vimos, a explicação de Possidônio: a riqueza do solo etrusco. Mas queremos crer que outras ra­zões, mais profundas, aceleraram essa deca­dência. Como sempre, trata-se de razões reli­giosas e políticas. A religião etrusca, salienta­mos, é essencialmente fatalista. Segundo os Libri fíituales, ou livros rituais, hoje desapa­recidos, a duração da nação etrusca foi fixada, com implacável rigor, em 10 séculos. E sabe­mos, graças, especialmente, aos eruditos tra­balhos de Massimo Pallottino, que a cronolo­gia etrusca começa no século X a.e.c., precisa­mente em 968.
“Do mesmo modo que nos 10 primei­ros séculos de sua vida”, escreve o eminente etruscólogo, “o indivíduo, mediante sacrifí­cios, podia premunir-se contra o destino, a na­ção, também ela, tinha possibilidade de se es­cudar contra os golpes da sorte... Mas a existência do povo etrusco, como individuali­dade étnica, não ultrapassou os limites que os próprios Tirrenos se tinham imposto... Essa submissão à fatalidade explica a atitude ado­tada pelos Etruscos da época recente: o desa­parecimento era inevitável, previsto desde a origem dos tempos e teria sido fútil querer mudar o curso do destino.”
A pluralidade dos documentos arqueo­lógicos e literários anteriormente se refere precisamente a esses “Etruscos da época re­cente”, isto é, os Etruscos que viviam nas últi­mas fases de sua cronologia, fases após as quais não haveria senão o nada e a morte. O Etrusco obeso do museu de Nápoles, que vi­via, segundo toda probabilidade, no século I ou II antes de nossa era, tinha sem dúvida ní­tida consciência do fatal prazo que espreitava inexoravelmente sua própria nação. Herdeiro de um passado glorioso mas, reduzido por Roma à condição de vassalo, sabendo que o “fim dos tempos” estava muito próximo, o obeso de Nápoles abandonara-se assim sem freios aos prazeres da mesa — os últimos que o poder romano concedia sem rabujar aos notáveis da Etrúria.

Um ideólogo nazista julga os Etruscos

Vinte séculos depois, essa “ tolerância" de Roma para com os Etruscos será vivamen­te criticada pelo ideólogo nazista Alfredo Rosenberg, em seu Mito do Século XX. Consi­derando os Romanos como Indo-Europeus — o que é ponto pacífico — e os Etruscos como povoação semítica misteriosa, surgida dos confins da Ásia, Rosenberg nega o valor da herança etrusca e sustenta que a civilização e, sobretudo, a religião etruscas precipitaram a decadência romana. Pois, aos olhos de Ro­senberg, a Etrúria não passa de um “centro judeu-semítico” que Roma deveria ter aniqui­lado com a máxima energia.
“Roma", escreve ele, “foi fundada por uma vaga nórdica que, muito antes dos Ger­manos e Gauleses se espalhara pelos vales férteis do Sul dos Alpes, destruindo o domínio dos Etruscos, esse misterioso povo forasteiro oriundo da Ásia primitiva.
Os Romanos representam o sangue nórdico, mas os Etruscos, que povoam parte da Itália antes do advento dos Romanos, re­presentam o sangue asiático...
É aos Etruscos que se devem as terrí­veis orgias das bacanais, todo o aparelho de magia e feitiçaria que manchou a religião romana.
Em suma, os Etruscos envenenaram o sangue romano e transmitiram à Igreja Cristã seu mundo imaginário de tormentos do além. É preciso romper com todas essas infames superstições que o espírito etrusco legou à Idade Média, mas então desmorona-se tam­bém absolutamente a Igreja Romana para sem­pre ligada aos tormentos do mundo infernal etrusco.”
Mais ainda que o caráter semítico dos Etruscos, que ainda está para ser demonstra­do, a última afirmativa do ideólogo nazista so­bre o legado da superstição etrusca à Igreja cristã e à Idade Média parece pura fantasmagoria.


Documentário sobre a civilização Etrusca





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