Este belo ser sinistro é envolto em mistérios,confusões,
sincretismos e sombras. Características diversas se entrecruzam, a ponto de
alguns considerarem que ligeiras diferenças de nomes referem-se a criaturas
totalmente diferentes, dependendo da região. A concepção mais comum da Leanan
Sidhe hoje é a de uma fada com poderes de musa, capaz de inspirar artistas a
terem enorme sucesso, porém condenando-lhes a uma vida curta. A forma mais
luminosa e menos cruel deste ser (cuja origem mais provável é celta) é sua
versão irlandesa, cujo nome é exatamente Leanan Sidhe. Ela seria inspiradora de
poetas, cantores e todos os artistas. Um “espírito de vida”, assim como sua
irmã Bean Sidhe (uma das versões da popular Banshee) seria o arauto da morte. O
encontro do poeta com sua musa confunde-se com o aisling, um estilo literário
muito popular na Irlanda dos séculos XVII e XVIII. Nele, o poeta, ao andar por
uma colina, tinha a visão do próprio espírito da Irlanda na forma de uma
mulher, ora bela e luminosa, ora feia e acabada. O aisling tornou-se um estilo
de forte cunho político, pois comumente a jovem em sua visão lamentava o estado
da nação irlandesa e prenunciava a volta de seus tempos gloriosos.
Alguns consideram que seja um trato simples entre as partes:
inspiração em troca da emoção profunda da qual ela se alimenta. Outros
sustentam que ela se alimenta de fato da força vital do artista, levando-o à
morte certa em um certo prazo de tempo. Neste caso, a característica vampírica
está presente, não pela drenagem de sangue, mas da própria energia de vida.
Após a morte do homem, a fada o carregaria para seu reino.
A etimologia do nome já abre as portas para outras
características conhecidas da fada. Tanto as formas Leanhaum Shee quanto Leanan
Sidhe significam “fada-amante” ou “fada-namorada”. Alguns tradutores apontam a
palavra de origem galesa leanan como sendo “amor de minha alma e espírito” ou
“minha inspiração”, dentre outras possíveis que incluem “concubina” e
“favorita”. Sidhe é a palavra para “fada” e refere-se geralmente a seres
encantados, denominando também um povo antigo que teria ocupado as “Terras
Verdes” muitos e muitos anos antes do aparecimento do povo irlandês.
A fada teria, então, o hábito de tomar o artista como
amante. A morte prematura do artista poderia ser, segundo outras
interpretações, uma profunda e desesperadora tristeza nascida do amor pela musa
e, principalmente, da falta que ela faria quando fosse abandonado por ela,
abrindo uma possibilidade bem diferente e interessante, já que a fada não o
drenaria até a morte, e mostrando que é possível que ela perca o interesse por
ele. É muito curiosa a interpretação que aparece dando conta da responsabilidade
do artista na perda de sua musa, numa simbologia fascinante sobre a morte (real
ou figurada) de todos que fazem arte ao não honrarem seu compromisso com este
que seria um “dom” divino. Também dá suporte à teoria de que ela não seria um
espírito maléfico, já que a morte vem dos próprios medos e obsessões do artista
e não de ações diretas da Leanan Sidhe.
Esta visão da Leanan Sidhe, onde ela domina um homem e o
consome até a morte, deriva, provavelmente, de um cruzamento com o mito da
sucubus. A teoria mais provável aponta que foi a Igreja Católica, em sua
cruzada para converter toda a Europa, que amalgamou o mito da Leanan com o da
sucubus (muito popular na época) com o objetivo de demonizá-la e enfraquecer a
relação dos povos de origem celta com suas divindades. Isso, na verdade,
aconteceu com boa parte das fadas da cultura celta, transformadas em algo muito
parecido com as sucubus pela Igreja. Com o tempo, características vampíricas
foram se tornando mais e mais presentes. Acredita-se que ela não bebe o sangue
das vítimas, mas o armazena em seu caldeirão, que seria a fonte de sua beleza e
seu poder de inspirar. Outras vertentes dizem que ela suga o sangue de pessoas
comuns para se alimentar, mas de seus artistas escolhidos suga sua força vital,
levando-os à morte. Ainda dentro desta vertente mais sinistra, existe uma
versão que afirma que, apesar de dotada de uma beleza incomensurável, é
possível, sim, resistir à sua sedução. Se isso acontecer, ela se torna escrava
daquele que deveria ter sido sua vítima. Mas se o artista cair em seus
encantos, diz-se que a única forma de escapar com vida é encontrar outro para
colocar em seu lugar. De fato, seria a única escapatória, já que a morte não
lhe traria alívio, pois ele seria carregado por Leanan para seu mundo.
Por outro lado, diz-se também que a Leanan desenvolve muitas
vezes um instinto de proteção em relação ao artista que inspira. Essa relação
pode até mesmo chegar ao ponto em que a fada se apaixonaria pelo seu protegido.
Sua beleza seria a real fonte de seu poder inspirador, levando seus
amantes-artistas a produzirem obras invariavelmente sobre amor, desejo e
desespero.
Existem também vários relatos desta fada tomando a forma
humana e sendo capaz de inspirar homens para a guerra. Uma história tradicional
ligada a Leanan Sidhe dá conta de sua influência com o Rei Eugene de Munster.
Tomando a forma humana e assumindo a identidade de uma poetiza chamada Eodain,
ela teria inspirado o Rei de tal forma que ele foi capaz de derrotar
completamente seus inimigos. Após isso, ele teria se entregado à luxúria e aos
prazeres mundanos. Abandonou seu reino, mudou-se para a Espanha, onde
constituiu família. Voltando ao seu reino depois de nove anos, encontrou seu
povo passando fome, enquanto alguns poucos banqueteavam em seu castelo.
Mesmo tentando livrar o povo desta condição, este não mais
confiava no rei que os abandonara. Procurando novamente Eodain, o rei pediu por
auxilio e ela foi capaz de inspirá-lo com seu poder de poetiza e de profeta,
levando Eugene à vitória e restabelecendo a ordem em seu reino. O tempo e as
diferenças vão modificando até mesmo as interpretações mais suaves deste mito.
A mesma cultura irlandesa que a via como um espírito inspirador virtualmente
inofensivo, hoje a vê como um ser vampírico, chegando até mesmo a identificar
seu nome como se referindo também a outra criatura, a Dearg-due, cujo nome se
traduziria como “sugadora de sangue vermelho”. Chega-se até a considerá-la uma
morta-viva, desconsiderando totalmente sua tradição como fada, um ser
descendente dos Sidhe, de outros mundos encantados.
Ela também confunde-se com Aine, ao lhe ser atribuído o
título de “Namorada dos Sidhe”. Aine seria a filha do deus Manannan mac Lir ou,
segundo outras vertentes, sua esposa. Neste caso, ela seria a filha de Morrigu,
que possuía a Cathair Aine, uma pedra capaz de causar loucura. Essa relação é
curiosa, pois remete à obsessão dos amantes de Leanan Sidhe, uma vez que,
segundo algumas versões, a única alternativa à morte nas mãos da fada seria justa
mente a loucura. Feixes de palha são queimadas em sua homenagem na noite de São
João na Irlanda.
Com tantas variações e sincretismos, a visão mais comum da
Leanan Sidhe hoje em dia é um amálgama de praticamente todas essas
características: ela é uma fada, uma vampira e uma musa, capaz de iluminar os
artistas com sua beleza e inspiração esplendorosas, sendo, ainda assim, um ser
envolto em escuridão. Em última instância, Leanan Sidhe parece ser fruto do
mito envolvendo o próprio artista e seu processo criativo. Os poetas galeses da
idade média, famosos por suas vidas curtas e intensas, não diferem nada de
mitos modernos como James Dean e Kurt Cobain. O estereótipo do artista sofrido,
infeliz, agoniado e brilhante ainda faz parte do imaginário mundial, alimentado
por esses grandes ídolos, exceções que, por sua enorme projeção, importância e
relevância, viram regra. E uma musa que inspira obras primas em troca da vida,
corpo e alma do artista é mais uma bela, assombrosa, terrível e trágica
história de amor
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